Mesa Paulista

Enfim, mesa posta.

Encantamento e comensalidade.

Este foi o texto de fechamento do Mesa Paulista Tradicional. Comer e beber juntos, livro documental abordando a mesa em São Paulo como resultante dos 4 perfis básicos da cultura paulista (a caipira, a piracuara, a caiçara e a barrageira). Foi lançado em outubro de 2016.

Assim o encerrei:

Depois deste verdadeiro périplo contemplando os mais variados aspectos de nossa mesa tradicional, funcional ainda hoje, e para manter esta chama acesa e preservada a mesa posta, não posso me privar de uma digressão.

Estou prestes a completar 70 anos. Oriundo de uma comunidade do interior do Rio de Janeiro, sou de um tempo anterior ao básico fogão a gás.

Aos 6 anos (sim, com esta idade) aprendi a acender o fogão, e a alimentar o fogo na cozinha da casa de meus pais. Um pouco mais, e comecei a ajudá-los com as panelas nas lides diárias. Tinha exemplos substanciais a me guiar: tanto da parte de minha família materna quanto paterna, todos, homens e mulheres, tinham um pé na cozinha.

Bem mais tarde, e com o aguçamento de minha curiosidade, dei-me conta do sentido de tudo isto: a importância do lar. Descobri que o conceito lar está eivado de conotações afetivas ou carinhosas: é uma forma especial de se definir, mais que a casa, mas os assuntos relacionados a ela, como a convivência com a família e os vizinhos. A família expandida.

Etimologicamente o termo cozinha indica o lugar da casa onde, primitivamente, se acendia a lareira e se mantinha o fogo sempre aceso, como personificação dos antepassados. Ali, no seio das famílias, no centro das casas, eram cultuados os deuses familiares (Vesta, Lares, Manes, Penates), divindades de coração quente, protetores dos lares domésticos, e assim responsáveis pelo bem-estar, a prosperidade e coesão das famílias. Por isto os bens, sobretudo a despensa, de cada família, eram consagrados a eles. E, por esta razão, a eles eram oferecidas suas partes nas refeições diárias, e juramentos feitos ou compromissos assumidos sobre o fogo, eram, e ainda o são compromissos sagrados.

Ainda na casa de meus avós aprendi que uma chaminé fumegante era sempre sinal de presença humana, desperta, e que o cheiro que propalava do alecrim do campo, no meio da tarde, pela vizinhança, era sinal de que alguém estava barrendo o forno de barro, e que logo sairiam fornadas de quitandas.

Foi também junto a eles, meus avós, que comecei a penetrar nos mistérios sagrados da natureza, e aprendi os segredos que envolviam a preparação e manutenção de nossas ricas hortas. E delas e de nossos pomares domésticos, a destinação dos alimentos, colhidos com respeito e gratidão, para nossas mesas. E a partilhar com o outro aquilo que nos abundava. E com todos os segredos da alquimia culinária, que de todos e de cada um cobrava atitude positiva no próprio momento alquímico do ato de cozinhar: os alimentos, os pratos, são sempre portadores dos sentimentos, desejos, intenções daqueles que os manipulam.

Disto nunca me esqueci. E por que haveria de ser diferente?

Bem, como visto sempre, mantive os pés e os sentidos na cozinha.

Foto de Toninho Macedo,
Autor do livro.

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