Bonecos Pescadores 
Uma Arte de Intervenção na Paisagem. Um exercício de cidadania. 

Às memórias das pesquisadoras Fernanda Macruz e Herda Jacob, do antigo Museu
de Folclore Rossini Tavares de Lima. Lá pelos idos de 1980, em suas ânsias de
descobrir e revelar a alma do brasileiro, expressa em sua cultura, uma destas
descobertas foi este artista e ser humano: Elias Rocha. 

 Grito de Socorro do Rio Piracicaba 
Quem passar pela rua do Porto, em Piracicaba, terá uma surpresa agradável. “Do lado de lá”, na margem direita do rio, numa extensão de uns 500 m, uma legião de criaturas, homens, mulheres e crianças (e ultimamente, até bois, cabritos) velam, silenciosamente, pela saúde do rio. Enquanto uns pescam, outros revolvem a terra da beirada d’água com enxada, outros estão simplesmente sentados ou sustentam bandeiras. 
A imobilidade da cena poderá, entretanto, inquietar o transeunte atento: são bonecos.  

Os bonecos pescadores de Elias Rocha, 56 anos, nascido “na beira do Rio Piracicaba, na beira do brejo”, ajustador mecânico aposentado. Para completar o que recebe como a aposentadoria, com sua carrocinha e sua égua Lontra, faz carretinho para uma serralheria e limpeza em uma tapeçaria; e ainda dá para atender à população da rua do Porto, que nem sempre pode pagar o carreto. 

Afora isso e a sua grande paixão nos últimos anos (os bonecos), ainda encontra tempo para pintar, na rua, peixes, tatus, socós, garças e sua própria égua. Sua carroça, testemunho silencioso de um tempo que se foi, traz inscritos nas laterais os nomes dos peixes que povoam generosamente as águas do rio e dos poucos que ainda povoam – piracanjuba, piramboia, pintado, tuvira, corumbatá… 

“Dava muito pexe, exagerado. A água era limpa, era água. De cima do barco a gente via o pexe lá im baxo. Eu era rico e num sabia. Rico e sem dinheiro, sem um tostão no borso.”

Cabô u nosso rio” 
O rio Piracicaba corre por uma região de grande concentração humana e de indústrias do Estado de São Paulo. O “progresso” o destrata em todo o seu percurso, e quando chega à cidade que lhe empresta o nome, e que também o maltrata, já está definhando, agonizante. Agonizante sim, pois o rio, ainda bem, não morreu de todo. 
Durante a estiagem, seu cheiro forte, insuportável, incomoda toda a população ribeirinha. Mas, basta vir a  
chuva que o rio se reanima um pouco, sobem alguns peixes maiores, até alguns pintados. Os dourados,  
estes, se foram e não voltaram. É uma lembrança tímida do tempo em que toda a população da R. do Porto, pescadores, tirava de suas águas seu sustento.  
Tempo que foi passando e ninguém se deu conta em tempo: 
“É u progresso, num é? Eu acho qui é issu. U progresso.Tá tudo ligado no rio agora. Vai tudo no rio.
É u progresso. Nos canaviá sortam veneno na cana, depois vem a chuva, vai tudo pro rio. Cabô o
nosso rio.” 

 “Então eu fiz uma recordação” 

“Por isso comecei fazê os bonecos, né, pá dá uma recordação. Tudo mundo pescava, né, tudo mundo no seu lugarzinho: Ei, esse lugar aí é meu, rapaz. Saí dái. Eu que fiz o trio prá descê lá no barranco  

do rio…Eu sinto uma saudade…” 

Assim, foi fazendo os bonecos e instalando-os na margem do rio. Uma recordação viva do rio, daquele tempo. Elias nunca viu boneco antes, e o insite se deu quando fez os primeiros judas para a garotada do bairro. Então, uma garotinha pediu-lhe para fazer um “boneco daqueles” (judas) prá ela. E Elias fez-lhe um, cheio de bagaço de cana. E ela ficou feliz. E por aquelas coisas que ninguém consegue explicar (ou consegue?) fez seu primeiro boneco pescador e o  pôs do lado de lá do rio. Pescando. 
  “Todo mundo se admirô. Aí eu fiz mais. Todo mundo gostô.
Aí eu fiz mais boneco, mais boneco. 
Prá mim eu ia lotá de ponta a ponta só de boneco.” 

Confecciona seus bonecos no quintal do Bar do Chico, um quintal grande. Ali se localiza o que ele chama de “minha oficina” – um copo e um banco instalados ao ar livre à sombra de uma moita de bambu. 

Ali também junta todo o material de que precisa e que recolhe do lixo e dos terrenos baldios: galhos secos das podas das árvores, restos de tapeçaria, poltronas velhas das quais aproveita tudo: a napa para o rosto, a espuma para o ventre/cintura e cabeça, as tiras de pneu e madeiras para ombros e braços – e luvas velhas das oficinas para as mãos. Roupas também não faltam. Afora os que ele cata, muita gente da cidade inclusive universitários, vão levá-las à sua casa. Junta tudo. O que está bom, distribui. 
 “Pros colega, reparte pros pobres igual eu. Eu também tenho ropa até morrê.
O que é ruim é que vai pro boneco”. 

E foi exatamente aí que Elias nos revelou seu senso estético: 
  “Meus boneco são prá se visto de longe. É galho de arve e ropa velha. De perto é feio. 
 Eu tenho vergonha, de perto. É feio e num parece nada. de longe, representa a pessoa qui tá lá.
Ponho sapato por pô, porque daqui lá num se vê, o sapato fica no meio do mato.”  
Entretanto, quando os apronta, expõe-nos nos bares, nas portas dos bares da beira do rio, “fazendo cena“, antes de irem ocupar seus postos definitivos. 

Sinto um negócio gostoso” 

Sobre sua inspiração, Elias diz que sonha com os bonecos: 
 “Muita vez eu tô acordado e tô veno. E quando eu tô fazeno num gosto que ninguém fique
perto, atrapaia eu. Aí num sô eu mais. Depois qui termina o boneco é que vorto a ser eu. Quando
eu tô fazeno num sô eu. Eu sinto um negoço gostoso quando eu tô fazeno.” 

Não nos revelou, no entanto, em nenhum momento, inclinação mediúnica. De uma religiosidade comum, tranqüilo e habitualmente dócil, tive a impressão, eu antes, uma certeza, de estar diante de um místico, amante da natureza. 

Ao construir um boneco, pega primeiro uma forquilha de pau que fica sendo a estrutura do corpo. À altura do ombro põe uma travessa de pau e a recapeia com uma tira de pneu para dar a curvatura. Nos baços põe outra madeira e na ponta uma luva velha à guisa de mão. Na cabeça põe um pedaço de espuma, o reveste de napa, onde pinta os detalhes da face. 

Os rostos devem ser sempre escuros. Brancos “não aparecem bem de uma margem à outra.” Faz isso nas horas de folga. A lontra (sua égua e companheira) está cansada, ele dá descanso prá ela e vai fazê boneco. 

De longe parece gente! 

Depois que instalou os bonecos, sentiu-se mais feliz, recompensado. E recompensado multiplamente. Primeiro que para o homem que ama, como sempre amou, a barranca do rio “representô que o rio ficô mais rio, que ficô mais bonito o rio.”  

Todo mundo para o carro, olha, e se admira. Também, porque sabe o que tudo isto tem representado para o povo do bairro, quase todo como ele, amantes e saudoso do seu rio. Mesmo que as pessoas em sua simplicidade não saibam ou não consigam expressar o que isto significa. 

 O povo do bairro tudo gosta. Tudo fica tirando sarro de mim. Tudo com orgulhu, criança, mulher, home, velho, tudo gosta.”  

Elias sabe que seus bonecos são assunto de importância no bairro. Mesmo quando se dirigem a ele. 

 A começar por sua casa. Os filhos e a mulher, como todos os outros, gostam. Os filhos dão risadas. Elogiam o trabalho do pai para os outros. Diretamente a ele, Não.  

“Eu fico orgulhosos, fico contente. E continuo fazendo mais.” 

Sua criação já lhe ofereceu e à comunidade, ao lado dos momentos de orgulho, algumas situações  curiosas. Certa vez, contam, logo no começo, durante o período de defeso (suspensão da pesca), os guardas florestais passaram pela Rua do Porto, viram os bonecos e pensaram se tratasse de gente transgredindo a lei. Pegaram o barco e foram do outro lado para adverti-los. 

 “Quando vortaro pro lado de cá viero chamá a atençào d’eu; aí, só ocê prá fazê isso aí, rapaz. Fomo correndo lá, num tinha ninguém, era boneco.” 

O sorveteiro também foi outro. 

Ele tava meio de gole (bêbado) e foi vendê sorvete pro boneco: sorvete! sorvete! E ninguém respondia. Veio de lá brabo comigo…” 

Mas nem sempre é de rosas a vida dos bonecos da beira do rio. Vira e mexe chega “algum pinguço” do lado de lá, arranca um boneco, “joga n’água prá ver rodá “(ser levado pelas águas).  

Ou atiça fogo. E Elias não se altera. E responde lá com uma certeza imensa no seu coração:  

“Que que eu vô fazê. Eu num ligo. Num é genti daqui do Porto não. É de fora. Mas, daqui di piracicaba, né? É coitado, né? Eli num sabe quanto demora prá fazê.” 

Afora isto, nestes últimos 4 anos, os mesmos enfrentaram 3 enchentes. Muitos resolveram seguir o rio. Os que ficaram banharam-se tanto que se transformaram quase que totalmente. 

E nosso bonequeiro continua tranquilo. Quando as águas baixam, no fim do verão, atravessa de barco e vai buscar suas criaturas, que resolveram ficar, prá trocar de roupa. Os que se foram, são substituídos. 

E pontifica com o saber de quem sabe a importância e dimensão exatas da obra que realiza:  

“É muito melhor a enchente do que os bonecos. Os boneco a genti faz outro. A água não. A água é Jesus Cristu qui dá prá nóis. “E muito melhor o rio cheio, os pexinhos vortando tudu. Eu fico feliz assim.” 

Enquanto lá do barranco as águas não baixam, na sua oficina, outros bonecos vão surgindo. 

Quando estive na rua do Porto em outubro p.p. havia um grande número de bonecos distribuídos por uns 500 metros na extensão da margem do rio. Neste verão 87, o rio está cheio. Os peixes voltaram a Piracicaba, “lugar onde peixe chega.” 

 Não vi muitos bonecos na margem. Mas, vários pescadores a pescar. Antes que as águas baixem os peixes se vão e volta o mau cheiro. Então, só restarão os pescadores bonecos para contar a história do rio. Em silêncio. Até quando? 

  • Elias faleceu em 2008, e boa parte de seus bonecos foram preservados na Casa do Povoador em Piracicaba.

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