Artesanado de Palha de milho, da cidade de Redenção da Serra. Artesã Giselda. Fotografia de Reinaldo Meneguim

Reiada

ic_reiadasReiada é o nome que os paulistas no Litoral Sul e em parte do Vale do Ribeira dão aos folguedos do Ciclo de Natal. De conteúdo essencialmente religioso e acompanhado sempre por violas e rabecas, secundadas por violões, caixa, ferrinhos e, eventualmente, cavaquinhos, conservam uma feição, grosso modo, ibérica.

No Ribeira, as Reiadas

Quero aqui render homenagem a João Toca da Onça (in memoriam), carinhosamente também chamado por Janjão, de Cananéia, memória viva e entusiasta das coisas da sua Cananéia, com quem tivemos oportunidade de conviver e de importantes lições.

Janjão, também conhecido por João Toca da Onça (nome do bar que mantinha no centro de Cananéia).

Depositário da memória do que ele chamava tempo dos antigo, ou então tempo d’ antes, cuidou da recuperação e manutenção da reiada em Cananéia, como também do Baile de Rei e de outros aspectos, cumprindo o papel do perfeito agente cultural.

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Foto: TM- São Paulo Bagre, 1986 – Janjão ao centro

Reiada é o nome que os paulistas no Litoral Sul e em parte do Vale do Ribeira dão aos folguedos do ciclo do Ciclo de Natal. De conteúdo essencialmente religioso e acompanhados sempre por violas e rabecas, secundadas por violões, caixa, ferrinhos e, eventualmente, cavaquinhos, conservam uma feição, grosso modo, ibérica. (Folias de Reis)

A devoção a Santos Reis que temos encontrado em São Paulo está mais em conformidade com o 1º grupo descrito acima.

Na região do Ribeira, entretanto, os grupos, sem se afastarem em linhas gerais das outras manifestações do gênero no estado, possuem alguns traços bastante característicos e mesmo distintivos. No seu geral, estão mais próximos de seus ancestrais portugueses do que os descritos até aqui.

Em vez de bandeira e oratório são guiados, à frente, por uma representação dos Santos Reis: três homens (dos quais um negro), vestidos de reis com sua vassalagem. E exatamente esta característica acaba por designar o grupo – Reiada: agrupamento de reis.

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Reiada do Icapara, Iguape

Como se pode observar, são quase todos da mesma família nesta foto – família Trude. Ao centro, com a viola, e ladeado por irmãos, filhos, netos e sobrinhos, Claudino Trude, que nos cantou modas das mais interessantes da suíte do fandango, afora as referências mais humoradas sobre sua viola.

Foto: TM- Iguape, 1987

Verdade que se ouve também dizer, em bem pequena escala, Folia do Rei e a referência folia sem bandeira (em contrapartida às folias de bandeira – do Divino, de São Benedito, Nossa Senhora do Rosário e outras).

A linha melódica bem como a instrumentação também os aproximam do Velho Mundo, para não falar da versalha (como se poderá constatar à frente na transcrição dos textos).

A instrumentação se apoia, sobretudo, nas cordas:

– Viola branca (também chamada caiçara) – geralmente encordoada com 7 cordas. Não se admite a

viola sertaneja, de 10 cordas.

– Violão, cavaquinho, rabeca (para alguns também denominada rebeca) de 3 ou 4 cordas, indistintamente.

– Há informações de que poderiam ser utilizados bandolins.

Com relação à percussão, sempre leve e reduzida, aparece:

– Caixa média – nem sempre presentes, até porque não existem muitas (de pau ocado e couro de veado ou bichos do mato)

-Pandeiro, Triângulo ou Ferrinhos – indispensáveis.

Em outra parte deste trabalho já abordamos, detalhadamente, o tema das violas brancas. (ver Página…)

Reiada a Vera mar

Pela convivência com o Rio (o Ribeira, o mais importante rio da Região e um dos mais importantes do Estado, durante muito tempo a principal artéria de toda a região), bem como pela intimidade com o mar, ao conjunto de pessoas de uma reiada passaram a denominar tripulação. Vez por outra se diz companhia. Mas isto muito mais em função dos textos cantados, onde aparece o termo. Na prática é tripulação.

Acrescente-se que, em todo o Ribeira até onde estivemos (Iporanga) e até uns 25 anos atrás as reiadas e folias não podiam prescindir das canoas.

O mesmo se aplica ao Mar de Dentro e aos demais rios da bacia hidrográfica da região. Dependendo do lugar, do sítio, iam sempre de canoa a vera rio ou a vera mar. E ainda hoje é possível acompanhar uma reiada a vera mar.

Janjão, então coordenador da Reiada de Cananéia, que documentei no começo de 86, marcou prá cantar no Juruvaúva, um sítio no extremo norte da ilha, do lado do Mar de Dentro. O acesso seria por mar. O início da cantoria de reis se dá sempre por volta de 21 horas.

João toca da Onça, o Janjão, (o líder ou como eles chamam, o gerente) contratou um barco – uma balera, de capacidade de até 1,5 toneladas. Saímos do Porto de Cananéia às 17 horas. Fomos parando nos sítios à vera mar para recolher (embarcar) a tripulação.

Como uma balera, por seu porte, não consegue atracar diretamente na praia, especialmente nos períodos de marés de quarta, como o vigente no momento desta viagem, a nossa atracou a uns 15 ou 20 metros fora. A tripulação já vestida devia ser transportada em canoas pequenas até o barco. Ou então, alguns que ainda estavam em trajes comuns transportavam os já paramentados no colo.

A primeira parada foi no sítio Barranco Alto (hoje Parque Náutico), onde embarcou uma parte da companhia.

Em seguida paramos em outro sítio, o São Paulo Bagre. Ao todo viajamos umas 25 pessoas. Ao meu redor, só pescadores (de 10, 12 aos 60 anos).

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Reiada de Cananéia

As “personagens” (reis e vassalos), já devidamente “paramentadas”, são trasladadas em canoas para a batera, ancorada a certa distância por conta da maré de quarta (marés produzidas pela lua em suas fases minguante ou crescente – nem sobem nem vazam muito) …

Foto: TM- São Paulo Bagre, 1986

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…onde vão se acomodando, constituindo a tripulação de uma reiada a vera mar – que seguirá por embarcação para visitar as comunidades em sítios de difícil acesso em pontos distantes da ilha (situação hoje modificada).

Foto: TM- São Paulo Bagre, 1986

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Os reis que em conjunto conferem o nome à expressão na orla do Mar de Dentro – Reiada.

Tripulação completa, tem início a viage até o ponto em que a função terá início.

Foto: TM- São Paulo Bagre, 1986

Noite de lua escura (minguante), também chamada de noite sem lua (sem claridade) nem por isso era difícil ao piloto saber por quais canais, ou braços de mar, deveria passar e onde havia coroas e baixios.

Chegamos ao Juruvaúva quase 21 horas. Cantaram em 8 a 10 casas (a descrição do ritual veremos à frente) até por volta de 4 horas. Embarcada a tripulação iniciou-se a viagem de volta, fazendo as mesmas paradas para o desembarque.

Dia amanhecido, sol de verão, de volta ao porto já quase 7 horas.

Neste Ciclo de Natal de 86 (fim de dezembro) foram cantar lá pros lados da Ilha do Cardoso. Foram desta vez em 3 barcos, mais de 50 pessoas.

A organização/ritual
As reiadas em todo o Vale, saem da noite de Natal até à noite de 5 amanhecê 6 de janeiro. Só cantam à noite. Mais para o lado de Cananéia saem uma noite, e folgam outra, folgam duas.

No município de Iguape e em outros do Vale, costumam sair toda noite. Iniciam por volta de 22 horas e cantam até 3, 4, 5 horas da madrugada. Na última casa em que cantam pedem ao dono da mesma, sem consulta anterior, para guardar o fardamento da tripulação (capas, coroas, adereços, instrumentos…). No outro dia iniciam na mesma pelo agradecimento e despedida, e seguem em frente.

Uma reiada quando completa, com variações, pode apresentar a seguinte formação:

– os 3 reis magos (dos quais um negro)

– 06 vassalos – meninos ou adolescentes, 2 para cada rei.

– 02 guardas – assemelhando-se a 2 soldados romanos, ou a policiais modernos (tenente e capitão) – protegem reis e vassalagem.

– Músicos, cantores e percussionistas – Em número de 7 ou 8.

O mestre além de tocar a viola, tira o reis, ou seja, canta a 1ª voz e comanda o ritual. Neste mister a palavra do Mestre é a lei. Toda a companhia o escuta com respeito.

Quando faz o tipe, um adulto, homem ou mulher, geralmente não tem outra função na tripulação que cantar. O Baixão, a 2ª voz, pode ser feita pelo que toca violão, cavaquinho, triângulo ou caixa.

Ao 1º Rei compete o provimento e a programação do grupamento. Deve providenciar, com a ajuda dos amigos, da comunidade, roupas e adereços que precisem ser substituídos, financiará os gastos iniciais para a saída. Receberá e agradecerá a contribuição dos anfitriões, convidando-os e às famílias para o baile, indicando dia e local do mesmo. Administrará contribuições recebidas, amortizando com elas os gastos (encordoamentos, transporte se necessário,…). Pode dividir seu ônus com o 2º Rei ou com um gerente, alguém que não participe da função.

Quem convida/recebe a reiada o faz também por devoção; se mora em sítio ou afastado, deve providenciar o transporte do grupo, conhece todas as regras do recebimento e o desenrolar correto do ritual. Aguardam o grupo, janelas e portas fechadas, as luzes apagadas dentro e fora de casa (inclusive quando na região urbana).

A tripulação chega à casa pé ante pé, em silêncio. Os reis postam-se de costas para a porta, de frente para os músicos, ladeados por sua vassalagem e guarda. A família em silêncio dentro de casa.

Tem início a cantoria que por seu próprio teor conduz o ritual:

“acordai se estáis dormindo
deste sono tão profundo
acordai e vem ouvir
a maravilha do mundo”

Narra a viagem e atropelos dos 3 Reis, expõe a que veio a tripulação, pede para acender a luz, abrir a porta e convidar reis e companhia a entrar. O apontado é válido para todos os grupos observados.

Nas casas onde há oratórios, santos, o folião tem que em versos saudar os mesmos.

Os anfitriões sempre hospitaleiros, tanto na zona rural como na urbana, são pródigos de acordo com suas posses. Alguns chegaram a oferecer mesa de salgados e bebidas à tripulação e acompanhamentos.

Depois do agradecimento em cantoria, silenciam-se os instrumentos, despedem-se e seguem em frente.

Baile de Reis

O baile de reis era/é o congraçamento de toda a comunidade no final do Ciclo de Natal. Todos podem participar. Nesta oportunidade quem não teve oportunidade de colaborar para a festa recebendo a reiada em sua casa, será convidado a fazê-lo nessa data.

Os convidados chegam a pé, de canoa, de batera (embarcação a motor, maior que um bote), de carro,

de bicicleta, dependendo do meio de transporte disponível. Chegam sozinhos ou em grupos. Os que vêm pelo mar (quando o meio de acesso é este), sobretudo de canoa, trazem suas roupas de baile, de festa e seu sapato, enrolados num plástico, para não serem molhados. Desembarcam e vão se aprontar na casa de algum amigo.

Antigamente o baile deveria acontecer no dia 5 amanhecer ao 6 de janeiro. Hoje em dia nem sempre é possível pelo regime de trabalho da tripulação e da comunidade. Entretanto, o mesmo deverá ter lugar durante o mês de janeiro, num sábado amanhece domingo.

Em janeiro de 86 houve, em Iguape, no mesmo dia bailes em Icapara, no Peroupava e no Guaricana.

Num outro fim de semana no Baecó e na Aldeia, já tendo ocorrido o do Rocio. Estes foram aqueles dos quais tivemos notícia, e só em Iguape.

O local escolhido é sempre um salão comunitário. Grande parte dos bairros se organizaram e construíram o seu, geralmente em regime de mutirão. Estes vieram substituir as grandes salas de antigas casas da zona rural.

Com variações de uma comunidade para outra, durante o dia preparam finalizam os preparativos.

O descrito a seguir foi observado no Baile de Rei no São Paulo Bagre (Cananéia), em Janeiro de 1987.

Prepararam o trono dos reis, assemelhando-se mais a um oratório barroco com três nichos. Preparam-no com o que têm à mão: varas, bambu, taquara, madeira emparelhada, duratex. O acabamento vai na base do papelão, empapelamento (colagem de papel com grude de farinha de trigo ou goma). O revestimento é feito com papel laminado procurando conservar as cores dos 3 reis. Na de Cananéia, azul para o rei negro, vermelho para o 1º rei e verde para o 2º.

A função manteve, de início, o mesmo procedimento da reiada em jornada: horário (21 horas), o mesmo ritual de chegada. Depois de cumprida esta parte, cantou-se para colocar os reis no trono.

São Gonçalo

Dança

Na região não há baile de viola que não comece assim: há sempre alguém que fez promessa para não chover no dia do baile ou durante a jornada. E promessa feita deve ser cumprida. E como em toda a região, é dança de abertura, por isso sempre curta, não ultrapassa os 10 minutos (ao contrário de outras regiões em que dura a noite toda).

Providencia-se então um jarro de flores e uma vela acesa, que são colocados à frente do salão. Forma-se a roda de pares e duplas (2 mulheres por exemplo), e inicia-se a moda (música, toada).

Os reis instalados ladeados por sua guarda, teve início o baile propriamente dito, com a roda de São Gonçalo, como deve ser sempre.

A roda vai caminhando, os dançantes de mãos dadas em dupla, num bailado suave e gracioso. Uma dupla avança, pára diante da flor e da vela transformados em ícone e baila. Um deles lança um beijo ao ícone, solta a mão, dá uma volta, o outro repete a mesma operação. Dão-se as mãos e seguem em frente. Vem a dupla seguinte, e assim por diante. Repetem, todos, a mesma operação sucessivas vezes, até darem a promessa por cumprida.

Então, interrompem a moda e a dança.

 

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