Artesanado de Palha de milho, da cidade de Redenção da Serra. Artesã Giselda. Fotografia de Reinaldo Meneguim

Fandango de Tamanco

ic_fandangotamFandango, no Interior e Litoral Sul e Norte, continua a designar os bailes de sítio, as folganças com que se animam ocasiões especiais (casamentos e aniversários) uma verdadeira “suíte” de danças em que os sapateados e  palmeados se alternam com os valsados ou bailados e os enfiadinhos (por registrarem figurados grupais, bem como danças de sapateado forte (fandango de tamancos e fandango de chilenas). Basta começar um arrodeado com seus rufados (sapateios) e palmeados que não faltam dançadores na roda. Fandangueiros ou folgadores, como dizem.

Fandango Litorâneo – Nome dado as duas versões (a de sítio e a da cidade) em que se apresenta, hoje, o fandango no Litoral Sul. Na de sítio predominam as danças de figurados grupais, em pares, cabendo aos homens a execução dos palmeados e sapateados, calçados com tamancos. Na urbana os pares enlaçados só executam os bailados também chamados de valsados.

Em ambos os casos, o acompanhamento é sempre feito com violas e rabecas. Apesar de considerado litorâneo, pelas características geofísicas do Litoral Sul pode encontrado ainda em vários pontos do Vale do Ribeira.

Ocorrência: Cajati, Cananeia, Eldorado, Iguape, Iporanga, Pariquera-Açu, Registro, Sete Barras.

Fandango da Tamancos – Versão masculina do fandango, sem os bailados, entremeando os fortes sapateados e palmeados com os queromanas, as modas relatam aspectos da vida rural, com possibilidades para improvisos. O acompanhamento se da com pe-de-bode (sanfona de oito baixos) e/ou violas.

Ché, qu´esperança! Vida cumo essa num hai…

In memoriam de Elói Faustino da Cruz (Ilois Inês)

E dos fandangueiros de Ribeirão Grande

Canta, canta passarim

I dobra, dobra sabiá

Quando canta no verão

É porqu’ é tempo di prantá

(Querumana)1

O título pode causar estranhamento aos que estejam mais distanciados do universo da cultura caipira, como estive eu até me aproximar da comunidade do Ribeirão Grande, há cerca de 35 anos.

Ribeirão Grande é pequeno município no interior sul de São Paulo, nas franjas do Alto Ribeira. Região de proteção ambiental, abriga em seus limites a sede e boa parte do Parque Intervales.

Com economia de base agrícola e uma população de 7.800 almas, tem pobreza, mas não tem criança na rua, velhos abandonados. O número de idosos é considerável, com muitos velhos já passados dos 70 anos, ainda rijos e firmes em suas atividades. No grupo de Fandango, dança emblemática da região que, com seu sapateado exige grande esforço de seus participantes, vários deles fazem questão de exibir suas resistências.

Criminalidade é ainda assunto especial, não rotineiro. A população continua receptiva e hospitaleira. Com dois dedos de prosa, sempre bem humorada e galhofas, o recém conhecido já é introduzido nas casas, recebido como amigo.

Assim cheguei ao Ribeirão, e de imediato deu-se início ao tempo de minha iniciação na cultura caipira, não só como pesquisador, mas como vivente da mesma. Aprendizagem intensiva.

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Deste momento conservo em um canto especial de meu coração, onde guardo minhas melhores recordações, pessoas que marcaram minha vida, minha caminhada. Há muitos que me são especiais. Muitos mesmo, a começar pela família Inês.

Dito Inês foi o primeiro a se achegar, sempre generoso, como generosa era a comunidade de Ribeirão Grande então. Abriu as portas de sua casa, e comigo seguiu conduzindo-me por todas as casas.

Reencontro com Dito em Ribeirão Grande, dez. 2011

Foto: Diego Dionísio

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Não consigo esquecer das seguidas noites ao pé do fogão em que, com tanta sabedoria e alegria, ao lado de sua Maria José e de seus filhos proporcionou-me tantas e tantas lições sobre a cultura caipira. A cultura de São Paulo. Nossa cultura viva.

Maria José e Dito em Ribeirão Grande, dez. 2011

Foto: Diego Dionísio

Não posso esquecer de seu entusiasmo ao nos conduzir ao Ribeirão dos Cruz, para nossos grandes saraus em casa de Tia Gertrudes, em que compartilhamos do tanto e tanto que aquelas almas sábias e generosas amealharam do “tempo dos antigo”.

Tempo retido nas memórias de Tia Gertrudes, Zé Tomás e Dito Inês, festivas, musicais e dançantes, repletas de benditos, recomendas, candongas, querumanas e outras modas bem cantadas. Do “Devino”, romances (histórias rimadas e cantadas), e histórias e casos contados… Da alegria nos fandangos. Imperdíveis. Noites e dias benditos e inspiradores!!!

Tempo retido, também, na memória sizuda de Paulino Amantino, mas que não escondia o tipo galhofeiro que foi, aprontando com a companheirada todas as peripécias durante os cortejos em que a comunidade seguia em lombo de animais para Capão Bonito, onde se davam as cerimônias oficiais dos casamentos civis e religiosos.

Na memória das coisas essenciais e sérias, retidas por dona Maria e Joaquim Honório, dos procedimentos medicinais e outros que garantiam a solução das dificuldades, quando se impunham.

Na memória das coisas simples e naturais retidas nas lembranças idílicas de Joaquim Silvério que não sentia dificuldades de colher frutos no mato, perto de casa.

Tempo de muitas dificuldades sim, mas tempo bom, de muita solidariedade e compartilhamento que deixou marcas indeléveis nas gerações que se seguiram.

Deste tempo restou o Casarão no Bairro dos Cruz, grande construção de taipa, madeiramento sem pregos e chão batido, patrimônio tombado. Diante da lentidão oficial na definição da melhor forma ou técnica adequada para sua recuperação, a comunidade do “Ribeirão dos Cruz”, herdeiros legítimos da técnica de sua construção, e acostumada a se organizar para resolver os seus problemas, juntou-se em regime de mutirão, e restaurou-o, sem deixar a dever. Surgiu, daí, o Centro Cultural da Casa Grande. Pequeno, modesto, mas essencial.

Até um tempo não muito distante os noivos não tinham lá tanta pressa assim: casavam-se quando terminavam de aprovisionar o necessário para as festas de uma semana que ofereciam, com bailes e comezainas, em que se envolvia toda a comunidade. Se as safras se sucediam boas, umas após as outras, tanto melhor: mais rápido se preparava. Se a natureza não se mostrava pródiga, era sinal de paciência. Como diziam muitos:

Se marcô o casamento, e num tivé dinheiro naquele mês muda, si num dé de novo, muda; se num tivé muda. Quando tivé um casamento num tar lugá é porque ventô bem naquele lugar; entrô dinhero.”

Engana-se, entretanto, os que pensarem que haviam parado no tempo. Só não fizeram um corte com o passado. Presenciamos, num tempo de fartura, muitos casamentos realizados na mesma semana. Elói Inês, fandangueiro e violeiro, casou uma filha. Muita fartura. A cada noite, no Ribeirão dos Cruz, os jovens/amigos se reuniam para, fazendo cordão, conduzirem, de mãos dadas, a noiva à casa do noivo, ou vice-versa, para os bailes que se revezavam na casa de um e da outra.

No dia do casamento a noiva apareceu num modelo requintado encomendado na“Rua das Noivas”, na capital. O noivo não ficou atrás com seu terno claro de fino corte.

Os desejos de ambos se realizavam. Todos. Inclusive o de seguirem para a igreja em um “bugue” branco, devidamente decorado com… bandeirinhas.

Na festa que se seguiu, no resto do dia, alguns se divertiam com o jogo do truco, enquanto no empalizado (cobertura) preparado para a ocasião e decorado com flores de cana, o fandango e as danças de pares se revezavam no piso de chão batido.

Na mesma semana, e em circunstâncias parecidas, Duvige (Edwiges, mestre de fandango) e dona Pedra casavam seu filho Simeão, todo galã metido em uma camisa de seda.

No terreiro, em várias tacurubas (itacurubas – maneira de cozinhar herdada dos índios, constando de 3 pedras dispostas em forma de triângulo, sobre as quais se assenta a panela, e por entre as quais se faz o fogo) eram preparadas as comezainas com fartura. No grande panelão de barro, de 50 litros, assentado diretamente no solo e com fogo ao redor, pulava a tradicional carne sem água (carne ensopada), para ser consumida com farinha de milho

No caso da mesa, presidida sempre pelo casal de noivos, a garrafa de pinga e os copos aguardavam os convidados que se sucediam nos vivórios (vivas), improvisando bersinhos (versos):

“ Com este copinho na mão

Vô falá…

Na hora do baile, no empalizado repleto de rapaziada afluente de várias partes, ao som de sanfonas e violas, as modas de palminha e caranguejo, os chotes e as vaneras se sucediam com tranquilidade. Quando os mais velhos atacaram o fandango, sob a batuta do Duvige, a maioria dos mais novos aderiram sem conseguir, entretanto, responder com exatidão suas marcas precisas. Aqueles pararam o baile e se polarizaram. De um lado um grupo argumentava que não dava para dançar o fandango, porque os mais jovens não sabiam e, não executando as marcas com precisão, atrapalhavam.

O outro grupo, por outro lado, argumentava que se os mais novos não participassem, o fandango iria se acabar. Como poderia sobreviver sem a participação dos jovens, mesmo que atrapalhassem?

E assim a discussão seguia, “pode”, “não pode”, enquanto um dos mais velhos mantinha-se à parte, sem falar. Até que falou:

“ Um momento. Oceis tudo tão certo. Oceis aqui pruquê se os moço se mete no meio, sem sabê, atrapaia e num sai fandango. Agora oceis também tão certo pruquê se os moço num dança, os veio se vão, e o fandango se acaba. Então nóis vamo fazê ansim: Num arrodeado só os véio dança e os moço aprecia. No otro, todo mundo dança que é pros moço aprendê. Tá certo ansim?”

Claro que estava certo. E o baile continuou. Que lição !!!

E claro que estava certo: o fandango continua tantos anos depois. Alguns daqueles moços, hoje pais de família, estão com seus filhos no fandango hoje.

Foi Nhô Dito Inês, como faço questão de citar em cada palestra que faço sobre cultura caipira, que numa noite de inverno, entre uma candonga e outra, sentado na bancada do fogão em sua cozinha, me ensinou o que não estava em nenhum livro dos tantos que eu já havia folheado:

“oia aqui, ô Toninho, virado é quarqué comida cardenta, bem temperadinha, e virada no fogo com farinha de mio. De mio.”

Pronto: estava definido, com clareza e concisão, nosso virado. Nossos virados, sim, no plural. Procurem nos livros! Pois no dia que vocês localizarem, estará sempre seguida do nome do nosso imortal Dito Inês. Eu lhes garanto.

O Ribeirão Grande se emancipou politicamente. Chegou asfalto, supermercado, internet. As parabólicas chegaram ao sertão. Mas a comunidade continua unida, solidária. Os filhos vão se casando e construindo suas casas próximos dos pais, nas terras que foram dos avós. Os mais velhos continuam incluídos. As crianças em seus lares, por maiores que sejam as dificuldades.

Canta, canta passarim

I dobra, dobra sabiá

Quando canta no verão

É porqu’ é tempo di prantá

Na vida, como na natureza, os tempos de plantios e de colheitas se alternam.

Que Dito Inês e o povo do Ribeirão, que me aproximaram de São Benedito, o cozinheiro, e a ele me apresentaram, não se esqueçam nunca disto. Destas lições que tenho trazido comigo, desde que aportei na comunidade pela primeira vez. Lembrem-se sempre de quem foram e continuam sendo. Assim, Dito Inês, Joaquim Silvério, Duviges, Paulino e outros sobreviverão em nossa cultura caipira, dançando, tocando, cantando, contando histórias. No âmago de seus amigos. Na alma do povo do Ribeirão.

Toninho Macedo, Primavera 2012

1-Querumanas são os “versinhos” cantados, em duetos, entre os rufados (sapateados) do fandango de tamancos.

Ocorrência: Capão Bonito, Ribeirão Grande.


Assista o vídeo Fandango Caiçara

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