Artesanado de Palha de milho, da cidade de Redenção da Serra. Artesã Giselda. Fotografia de Reinaldo Meneguim

Carros de Bois

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Ventania – Franca

Acervo da Pinacoteca de Franca

Reprodução da bela obra de Bonaventura Cariolato, aquarelista inigualável, que escolheu a cidade para viver, que o acolheu e lhe foi fonte de inspiração.

Retrata um dos comboios que, anualmente eram organizados para transportar donativos para um leprosário existente na cidade de Água Suja (atualmente Romaria), entre Uberaba e Monte Carmelo, em Minas Gerais.

Lembrando ainda que, se até à metade do século XIX os carros de bois constituíam-se, em muitos lugares no meio de transporte possível, até metade do século XX, o mesmo ainda não aposentado nos dias de hoje.

Em muitas circunstâncias ainda é o meio de transporte possível, chegando a locais em que nem os tratores acessam.

Foto: Reginaldo Emídio

Criação: Felipe Scapino / Toninho Macedo

Dentre as soluções, hoje alternativas, para atender às necessidades de transporte (trasladar mercadorias, objetos, pessoas de um lugar para outro) são utilizadas canoas, botes, balsas e chatas impulsionadas a remo, varejões (grandes varas) ou à vela, charretes, carroças, carretões, carros de boi.

Não raro confecciona, sozinho ou com a ajuda da família e de amigos, seu próprio meio de transporte.

Curiosamente na Grande São Paulo existem vários fabricantes artesanais e consertadores de charretes, troles, carretões, carros de bois e carruagens.

São muito praticados ainda, a exemplo dos antigos tropeiros, os transportes em lombo de burros, com jacás (grandes cestos) e cangalhas. No chamado Vale Histórico, no Vale do Paraíba, tropeiros com suas tropas de mulas, continuam a perfazer as trilhas de seus ancestrais vencendo os desafios da “serra do diintero” (trecho denominado Serra do Dia Inteiro, na Serra da Bocaina, pelo tempo que se gasta para vencê-la).

Os carros de bois

Também o carro de bois, como o “primeiro veículo que rodou em terras do Brasil”, realça um dos eixos centrais da sociedade brasileira – legitimada pela presença humana que fora alargada ao longo da amplitude territorial dessa Nação. Na medida em que fomentou a circulação humana, tanto expedicionária, como expansionista ou de abastecimento, por muitos séculos, o carro de rodas foi (i)materializando, disseminando e (des)unificando usos e costumes (identidades-sertão), no variados recantos do Brasil.

Margarida do Amaral Silva

Com Martim Afonso chegaram as primeiras mudas de cana de açúcar, de uvas e outras frutas, além de animais, e a tecnologia para a construção dos essenciais carros de bois que ajudaram no deslanche e efetivação dos engenhos de açúcar.

O carro de bois é de origem um dos mais primitivos, simples e eficientes meios de transporte, já utilizado pelos egípcios, babilônicos, hebreus, fenícios, chineses e hindus. Os europeus, aquando da colonização da África e da América, transformaram os bois, encangados ou não, em importante meio de transporte das cargas das caravelas, e no dia a dia.

Sua introdução no Brasil deu-se no início da colonização, para a construção dos engenhos de açúcar e como “motor” para o seu funcionamento, bem como para os mais variados tipos de transportes de cargas, de produtos agrícolas e até mesmo de pessoas.

Foi o tempo da grande “alquimia cultural e social”, alavancada pela introdução da cana de açúcar, inicialmente em São Vicente, difundindo-se, quase que de imediato, por toda a costa. Foi o começo das grandes transformações estruturais: a construção dos engenhos de açúcar, com todos os seus mecanismos, a introdução da mão de obra de bântus escravizados, o surgimento das casas grandes, no nordeste (em São Paulo, os casarões): a introdução dos carros de bois garantiu a expansão dos engenhos pela orla, inicialmente pela estreita faixa de terra estabelecida pelo Tratado de Tordesilhas, e logo em seguida pela demanda do sertão ínvio.

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Esta cena foi também retratada em outra tela, com pequenas alterações nos personagens e nas edificações. Com 45,5×67,1 cm, este óleo sobre tela pintado em 1921 pertence ao Museu Paulista da Universidade de São Paulo e tem o título Hospital e Igreja da Misericórdia, em Santos.

Imagem in CD-ROM Benedito Calixto -150 anos, editado em 2003 pela Fundação Pinacoteca Benedicto Calixto, Santos/SP. É interessante frisar que este veículo ainda se encontra em uso nos meios rurais, até mesmo na Grande São Paulo.

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Só para citar, no município de Caçapava (em torno de 100 da capital), numa das regiões mais urbanizadas, industrializadas e globalizadas do estado (o Vale do Paraíba), alheios às velocidades desafiadoras, são muitos os carros de bois que, com suas marchas rotuladas pejorativamente de modorrentas, continuam a ser parceiros de muitos pequenos e médios produtores rurais.

Tuca e Paulo Borsói – Caçapava- ..Foto: Elias Gomes

Para este tópico tomamos como ase o antológico Ciclo do carro de bois no Brasil, de Bernardino José de Souza, que nos dá conta das múltiplas funções dos carros de bois no desenvolvimento do Brasil, ressaltando que, em matéria de transportes, sobretudo rurais, “desde que o Brasil é Brasil o carro de bois foi, e ainda é o veículo mais generalizado, mais útil, mais seguro e mais adaptado às condições do meio físico e às possibilidades econômicas da nossa lavoura. (Ressalte-se que o autor viveu entre 1884 e 1949, sem ter visto publicada obra que lhe custara 4 anos de pesquisas/ trabalho).

Assim se refere a este primeiro transporte sobre rodas em nosso país:

Apareceu no alvorecer da nossa história e a seguiu através dos séculos iá venciados, continuando até hoje a rodar e a servir em grande parte do território nacional. Foi, sem sombra de dúvida, um dos mais prestantes Instrumentos de trabalho trazidos pelos portugueses e aqui posto em serviço desde os inícios do aproveitamento real da terra, mais ou menos meado do século XVI. Trasladado para este lado do Atlântico, havia de se incorporar ao aparelhamento econômico da colônia, que seria no futuro a maior glória lusitana. O carro de duas rodas, tirado por bois, de primitiva mas resistente estrutura, amoldar-se-ia à terra virgem e começaria, ele mesmo, a abrir com as suas rodas maciças os primeiros caminhos, desde as matas litorâneas até o sertão bruto: aí, iria encontrar, mais favoráveis, as principais condições das chamadas “vias naturais” – terreno mais ou menos aplainado, solo suficientemente compacto, ausência de vegetação exuberante e entrançada. Por Bernardino José de Souza

Como dito acima foram introduzidos no Brasil no sec. XVI, para as lides nos engenhos de açúcar e, desta forma, permaneceram ativos, de forma marcante, em fazendas e engenhos até a metade do sec. XX.

Consta que para os tratos da plantação de cana “para um partido de produção de quarenta tarefas, o lavrador/senhor de engenho necessitava pelo menos de vinte escravos, com a competente ferragem para o maneio das terras, de quatro a oito carros e alguns bois para conduzir ao engenho a cana cortada e despida de folhagem.

Como veículo de transporte de carga, o carro de boi participou da história econômica e militar do Brasil, com o som característico da fricção de seus eixos quando em marcha, o que lhe rendeu o apelido de “carro cantador”. Por: Bernardino José de Souza

Quanto ao período exato e funcionamento, e onde se deu a introdução do 1º carro de bois no Brasil, há divergências. Segundo, alguns em Salvador; para outros em São Vicente.

Segundo Ambrósio Fernandes Brandão foi

Tomé de Souza, nosso primeiro governador-geral quando veio para o Brasil, trouxe carpinteiro, carreiros de bois práticos, registrando que em 1549, ouvia-se o cantador nas ruas de Salvador, dirigindo carro de boi. É necessário que tenha de 15 a 20 juntas de bois com esses carros necessários aparelhados. Também a vaca, sendo boa, é estimada, e o novilho, que serve já para se poder manter em carro, a seis e a sete mil réis.

Diálogos das Grandezas do Brasil

Como também mandou vir de Cabo Verde bois de carro e gado vacum em 1504. Esta importação continuou pelos anos afora.

Desde o fim do século XVI já era conhecida à distinção entre os carros de bois adstritos aos serviços dos engenhos e os que eram destinados a outros transportes. Nos primeiros tempos da colonização, além de manter em movimento a indústria açucareira – da roça ao engenho, do engenho às cidades, o carro de bois mobilizava a maior parte do transporte terrestre durante os séculos XVI e XVII.

Também foi responsável, o carro de bois, por estabelecer as comunicações entre os núcleos de povoamento que surgiram aqui e ali ainda na estreita faixa das Capitanias Hereditárias, mais próximo do litoral.

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Normalmente os carros de bois iam até as cidades ou vilarejos levando produtos encomendados. Nessas épocas era comum pessoas usarem o veículo como carona.

A pesquisadora Margarida do Amaral Silva, estudiosa do patrimônio imaterial em Goiás, atenta às bases históricas desse patrimônio, que foi se constituindo, ao longo do tempo, pela incursão de paulistas, e por fim dos carros de bois, comenta que

Na medida em que fomentou a circulação humana, tanto expedicionária, como expansionista ou de abastecimento, por muitos séculos, o carro de rodas foi (i)materializando, disseminando e (des)unificando usos e costumes (identidades-sertão), nos variados recantos do Brasil.

E cita …

Transportando materiais de construção e produtos da terra – o pau-brasil, madeiras, a cana-de-açúcar entre os primeiros -, mercadorias e pessoas, surpreendemo-lo nos primórdios da nossa ‘civilização’, representando papel relevante na sua função de único meio de transportes pesados por terra, ligando ademais os estabelecimentos humanos, isolados ou agrupados […]. Na construção de vilas e cidades, no estabelecimento dos primeiros domínios rurais, na exploração das riquezas florestais, nos labores das primeiras culturas aparece sempre o pesado veículo de duas rodas maciças tirado por bois, que foram dentre os primeiros animais introduzidos pelos colonizadores no Brasil. […] Esteve presente, o carro de bois, em toda a mobilização da nossa riqueza econômica, senão até em toda a nossa “evolução” social

In – Margarida do Amaral Silva

Os transportes motorizados aceleraram o processo de decadência dos carros de bois, aqui como em outras partes do mundo. Contudo, em todos esses lugares, artesãos continuaram a construí-los e a aperfeiçoá-los e, graças a essa gente, o carro de bois persiste na sua marcha pela história.

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Tuca, Paulo Borsói e Carajá – Caçapava- …Foto: Elias Gomes

Bernardino José de Souza, em sua obra já destacada, transcreve carta de Luís Amaral, de 23 de abril de 1942 em que ironiza as notícias de desaparecimento dos carros de bois:

“Embora há cerca de quinze anos se houvesse transportado solenemente para o Museu do Ipiranga, num Thornycroft estrangeiro, o “último” carro de bois de São Paulo, os carretões e os carros de mesa ainda gemem vagarosamente em quase todos os municípios paulistas, inclusive no da Capital, a cujas pontas de rua chegam até hoje. Quanto ao interior, os carreiros ainda têm o prazer de – botando de lado as outras, por demasiadas – atrelar apenas a “junta do coice” aos “V8″ paralisados nos atoleiros e recusar orgulhosos a gorjeta, sem se esquecer de, mais tarde, dobrar a ração de restolho a seus bois valentes”.

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C:\Users\atmacedo\Desktop\Caçapava- Carros de Bois\_DSC0059.JPGPaulo Borsói – Caçapava- Foto: Elias Gomes

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Tuca Borsói – Caçapava- Foto: Elias Gomes

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Fotos: Elias Gomes – Caçapava XXX – Izidro Ramos (à E) e Tuca Borsói (à D)

Não é demais reafirmar que nossos tradicionais carros de bois, introduzidos que foram no Brasil pelos portugueses, seguiram, e seguem ainda, uma trajetória contínua; era nesses carros que, na década de 20, as mercadorias como farinha de trigo, sal, querosene, chegavam em grandes quantidades ao interior, e eram levadas para serem vendidas no comércio.

Na referida obra ficamos sabendo ainda que em 1939, em São Paulo

os 4.142 carros de bois recenseados, confirmando as palavras do ilustre escritor, constituem a prova mais evidente de sua relevância, na economia do mais progressista Estado da União.” .

E acrescenta uma reminiscência pessoal:

em fins de 1929 viajávamos de Araxá, em Minas Gerais, para a capital de São Paulo, que íamos ver, observar e admirar pela primeira vez. Ao atravessarmos numa soberba ponte metálica o caudaloso rio Grande, penetrando o território paulista, a primeira coisa que vimos da janela do vagão, à beira mesmo do grande rio, foi um carro de bois, de todo em todo semelhante aos do Nordeste. Surpreendeu-nos o velho veículo naquele lugar, pois havíamos lido a notícia do recolhimento ao “Museu” do último carro de bois de São Paulo. A trasladação feita na trepidante capital não tinha senão um valor simbólico.

História Geral da Agricultura Brasileira – 3 vols., n.v 160 da “Brasiliana”.

Nos meados do XIX, pelas ruas da capital iam e vinham os carros de bois, gemendo pelos morros, a transportar mercadorias.

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Família Borsói e Carajá

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Tuca e Paulo Borsói

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Jarinu: Arlito, o carreiro e São Benedito

Fotos: Elias Gomes

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Carros de bois

Os carros de bois, introduzidos que foram por Martim Afonso de Souza no início da colonização em São Vicente.

Celebrados na iconografia desta edição do Revelando, e cuja extinção já foi por diversas vezes anunciada, continuam ativos não muito distante da cidade de São Paulo.

Tal qual ocorre ainda hoje com as tropas de burros, transitam por onde os veículos motorizados não conseguem fazê-lo.

Em Caçapava temos a maior concentração destes veículos.

Ali também se situa a plantação de cana da bem sucedida Família Borsói, que abastece o mercado de caldo de cana na Capital.

Possuindo tratores, grandes caminhões de carga e veículos de outros portes, afirmam que não podem prescindir deste veículo para tirar a produção dos pontos acidentados da fazenda.

Aqui vemos o Patriarca Paulo Borsói empunhando um guião, bem como seu filho, para condução das juntas, com um detalhe: não possuem ponteiras, (chuços). O tilintar de alguns elos de corrente é o suficiente para estimular e conduzir as parelhas.

Foto: Elias Gomes – Capital 2013

Rodou por primeiro em terras do Brasil…

Para Marília Fanucchi,

pelas portas que indicou e o portão que abriu.

Também o carro de bois, como o ‘primeiro veículo que rodou em terras do Brasil’, realça um dos eixos centrais da sociedade brasileira – legitimada pela presença humana que fora alargada ao longo da amplitude territorial dessa Nação. Na medida em que fomentou a circulação humana, tanto expedicionária, como expansionista ou de abastecimento, por muitos séculos, o carro de rodas foi (i)materializando, disseminando e (des)unificando usos e costumes (identidades-sertão), nos variados recantos do Brasil15.

Margarida do Amaral Silva

Nas edições deste ano destacamos meios de transporte e locomoção, introduzidos no Brasil no período colonial e ainda em uso nos meios rurais, e até mesmo urbanos, em São Paulo.

Assim destacamos na edição do Revelando Entre Serras e Águas as romarias montadas e no Revelando São Paulo – Vale do Ribeira o trabalho com tropas de burros e mulas nos meandros da Mantiqueira. Ainda agorinha, por ocasião do Revelando São Paulo – Vale do Paraíba, foi a vez de ser contemplada a mais que centenária Cavalaria de São Benedito, de Guaratinguetá.

Nesta edição da capital, a 50ª do programa, destacamos os carros de bois. E não precisamos seguir longe: no município de Caçapava (distante da capital cerca de 100 Km), situado numa das regiões mais urbanizadas, industrializadas e globalizadas do estado (o Vale do Paraíba), alheios a velocidades desafiadoras, persistem inúmeros carros de bois. Com suas marchas rotuladas pejorativamente de modorrentas, continuam a ser parceiros imprescindíveis de muitos pequenos e médios produtores rurais.

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O carro de bois é de origem um dos mais primitivos, simples e eficientes meios de transporte, já utilizado pelos egípcios, babilônicos, hebreus, fenícios, chineses e hindus. Os europeus, quando da colonização da África e da América, transformaram os bois, encangados ou não, em importante meio de transporte das cargas das caravelas, e no dia a dia.

Jessé, o encantador de animais. Seus animais são companheiros de labuta, no seu dia a dia, baldeando areia, puchando produção de alimentos de pontos inacessíveis. Conduz seu carro falando, por vezes ao ouvido de seus bois carreiros.

Itaoca, Vale do Ribeira – Foto: Reinaldo Meneguin

Sua introdução no Brasil deu-se no início da colonização (Sec. XVI), para a construção dos engenhos de açúcar e como “motor” para o seu funcionamento, bem como para os mais variados tipos de transportes de cargas, de produtos agrícolas e até mesmo de pessoas.

Bernardino José de Souza, em seu antológico Ciclo do carro de bois no Brasil, nos dá conta das múltiplas funções dos carros de bois no desenvolvimento do Brasil. Ressalta que, em matéria de transportes, sobretudo nos meios rurais,

desde que o Brasil é Brasil o carro de bois foi e ainda é o veículo mais generalizado, mais útil, mais seguro e mais adaptado às condições do meio físico e às possibilidades econômicas da nossa lavoura.

(Ressalte-se que o autor viveu entre 1884 e 1949, sem ter visto publicada a obra que lhe custara 4 anos de pesquisas/ trabalho).

Assim se refere a este primeiro transporte sobre rodas em nosso país:

Apareceu no alvorecer da nossa história e a seguiu através dos séculos iá venciados, continuando até hoje a rodar e a servir em grande parte do território nacional. Foi, sem sombra de dúvida, um dos mais prestantes Instrumentos de trabalho trazidos pelos portugueses e aqui posto em serviço desde os inícios do aproveitamento real da terra, mais ou menos meado do século XVI. Trasladado para este lado do Atlântico, havia de se incorporar ao aparelhamento econômico da colônia, que seria no futuro a maior glória lusitana. O carro de duas rodas, tirado por bois, de primitiva mas resistente estrutura, amoldar-se-ia à terra virgem e começaria, ele mesmo, a abrir com as suas rodas maciças os primeiros caminhos, desde as matas litorâneas até o sertão bruto: aí, iria encontrar, mais favoráveis, as principais condições das chamadas “vias naturais” – terreno mais ou menos aplainado, solo suficientemente compacto, ausência de vegetação exuberante e entrançada.

Introduzidos na colônia como suporte para as lides nos engenhos de açúcar, assim permaneceram ativos, de forma marcante, em fazendas e engenhos até meados do sec. XX. Quanto ao período exato e onde se deu a introdução do 1º carro de bois no Brasil, há divergências. Segundo, alguns em Salvador; para outros em São Vicente. O certo é que, tanto Salvador quanto São Vicente, habituaram-se logo ao seu canto dolente. Tracionados por bois mandados vir de Cabo Verde, e, já de imediato, aquele som característico da fricção de seus eixos, quando em marcha, que lhe rendeu o apelido de “carro cantador”.

Consta que, ao tempo de sua introdução em nossa terra, nos tratos da plantação de cana

“para um partido de produção de quarenta tarefas, o lavrador/senhor de engenho necessitava pelo menos de vinte escravos, com a competente ferragem para o maneio das terras, de quatro a oito carros e alguns bois para conduzir ao engenho a cana cortada e despida de folhagem.”

Como veículo de transporte de carga, o carro de boi participou da história econômica e militar do Brasil.

Desde o fim do século XVI já era conhecida a distinção entre aqueles adstritos aos serviços dos engenhos e os que eram destinados a outros transportes: foi também responsável por estabelecer as comunicações entre os núcleos de povoamento que surgiram, aqui e ali, ainda na estreita faixa das Capitanias Hereditárias, mais próximos do litoral.

Nos primeiros tempos da colonização (séculos XVI e XVII), além de manter em movimento a indústria açucareira – da roça ao engenho, do engenho às cidades- mobilizavam a maior parte do transporte terrestre. Quando transportavam materiais de construção para o interior, voltavam carregados de pau-brasil ou de produtos agrícolas das surgentes lavouras interioranas. Durante o século XVII, além de instrumento necessário à indústria açucareira, o carro de boi continuou a monopolizar quase todos os transportes por terra no Brasil como o único veículo utilizado na condução de materiais de toda sorte para as construções que iam sendo feitas para dentro do país.

No século XVIII, entretanto, com o aparecimento e a generalização das tropas de burros as famosas tropas de muares, em certas regiões do Brasil, esta situação mudou: mais leves e mais rápidos, os muares não exigiam trilhas prévias e terrenos regulares.

Daí por diante, até o fim do século XIX e mesmo nos primeiros anos transcorridos do século XX, as tropas de muares passaram a dividir com os carros de bois as tarefas dos transportes por terra no interior do Brasil.

“Nos caminhos rudimentares que então possuíamos, transformados em lamaçais na estação das chuvas e no verão reduzidos a ásperas trilhas quase intransitáveis, foram os carros de bois e as tropas os únicos meios de ligação dos núcleos de povoamento entre si e entre eles e as roças e lavouras. De outra forma não se venceriam os obstáculos naturais”.

Entretanto o carro de bois perdeu sua primazia, mas não seu espaço. E isso até hoje.

Foi ainda Bernardino José de Souza que tão bem chamou-nos atenção para a dinamização de esforços que significou a consorciação das duas formas de transporte – os carros de bois e as tropas de muares – que apontam as vantagens sobre outros transportes. Vale a pena aqui a transcrição das mesmas, mesmo sabendo-se da inacessibilidade de alguns rincões, de forma especial na região de São Paulo, até o final do séc. XVIII:

Mas o carro de bois se revelou mais econômico, nos chapadões, por efetuar transportes mais concentrados, exigir menos trabalho e melhor resguardar as cargas contra as intempéries. Na carga, uma vez arrumada, não se mexia mais até seu destino final. O couro da tolda protegia contra o sol e chuva. A mesa do veículo, elevada acima do solo, impedia se umedecessem ou se sujassem as mercadorias.

Vesperando a entrada das águas encaminhavam-se os carros pelas estradas. Iam puxados por juntas de bois, de cinco a doze. Um menino, o candeeiro, com pequena vara de ferrão, colocava-se à frente dos bois de guia e, puxando-os pela chifradeira, os punha a caminho. Atrás, o carreiro, com ferrão maior, excitava as reses, não lhes permitia descansar nem amuar. Saíam, mal rompia o dia, e avançavam uma légua. Aí paravam perto dalgum ponto d’água. Descangavam as juntas, soltando os ajoujos, mas deixando as chifradeiras para que os bois não se afastassem demais. Empilhavam cangas, com os canzis, cambões e tiradeiras. Almoçavam à moda dos tropeiros. À tardinha, traziam de novo os animais que haviam pastado, bebido e ruminado. A partir do coice e até a guia, cangavam sucessivamente as juntas ligadas uma à outra canga pelo cambão e pela tiradeira: e reencetavam a caminhada por mais uma légua.

Acostumados que estamos a um ritmo de vida acelerado e alienado, é-nos difícil hoje imaginar a intensa conexão com o viver em um mundo de tantas precariedades:

Ao entardecer pousavam junto à água. Soltava-se completamente o gado na pastagem de beira-estrada. Escorava-se o cabeçalho do carro, e preparava-se a modesta refeição nos caldeirões equilibrados sobre as trempes. Coado e bebido o café, em torno do fogo se sentavam carreiro e candeeiro. Sob a mesa, um couro cru servia de cama ao primeiro. No espaço entre o toldo e a carga, estendia-se o menino para dormir. Junto à meia luz dos tições, um cão de guarda velava sobre todos.

Por vezes, pelo pIaino, seguiam em fila dezenas e dezenas de veículos, mais de cem em certas ocasiões. Cada qual se distinguia, e era reconhecido por seu dono, pelo timbre especial de sua cantiga, que era a nota estrídula do eixo a atritar contra os cocões.

Pelos ermos desprovidos de quase tudo, e submersos, ao mesmo tempo, em um mundo de belezas e desafios, e afeitos à solidariedade por instinto, sobrava tempo para os exercícios de alma:

À noite, a linha dos fogaréus semelhava a frente de estranho exército acampado na chapada erma, tais quais os tropeiros. Violas, violões, sanfonas, saíam dos bornais que os guardavam. Ao longo da intérmina coluna, evolavam-se para as estrelas, sob o azul profundo do céu recamado de brilhantes, as canções dos carreiros, a melopéia dos chapadões, a mesma endeixa sentida de nostalgia, de mágoa e de amor, da poesia espontânea dos simples e dos solitários.

Não dependiam de ranchos, como a tropa. Insensível às intempéries, o toldo dispensava a arrumação diária das cargas sob coberta enxuta. Exigindo pessoal menor que os lotes, o carro abrigava ao candeeiro e ao carreiro entre as rodas, sob a mesa, ou também no interior, entre o toldo e a carga.

E, assim, como evidenciado acima, seguidos pelas tropas, os carros de bois foram transportando, Brasil afora, sementes de nossa cultura cabocla, como aponta a pesquisadora Margarida do Amaral Silva, estudiosa do patrimônio imaterial em Goiás, atenta às bases históricas desse patrimônio que foi se constituindo, ao longo do tempo, pela incursão de paulistas, e por fim dos carros de bois, comenta que

Na medida em que fomentou a circulação humana, tanto expedicionária, como expansionista ou de abastecimento, por muitos séculos, o carro de rodas foi (i)materializando, disseminando e (des)unificando usos e costumes (identidades-sertão), no variados recantos do Brasil.

E cita…

Transportando materiais de construção e produtos da terra – o pau-brasil, madeiras, a cana-de-açúcar entre os primeiros -, mercadorias e pessoas, surpreendemo-lo nos primórdios da nossa ‘civilização’, representando papel relevante na sua função de único meio de transportes pesados por terra, ligando ademais os estabelecimentos humanos, isolados ou agrupados […]. Na construção de vilas e cidades, no estabelecimento dos primeiros domínios rurais, na exploração das riquezas florestais, nos labores das primeiras culturas aparece sempre o pesado veículo de duas rodas maciças tirado por bois, que foram dentre os primeiros animais introduzidos pelos colonizadores no Brasil. […] Esteve presente, o carro de bois, em toda a mobilização da nossa riqueza econômica, senão até em toda a nossa “evolução” social

Já bem mais tarde, no adiantado da colonização, por todo o interior povoado, que a cultura cafeeira ia conquistando para se tornar a coluna mestra da economia nacional, rodavam milhares de carros de bois. Eles e as tropas de muares dividiam, segundo as zonas, os encargos da translação dos produtos agrícolas e das mercadorias, predominando, porém, aliás como em toda parte, nos serviços internos das fazendas de café.

Taunay, em sua monumental História do Café, escreveu:

As terras de derrama suave de São Paulo permitiam, até certo ponto, o emprego de viaturas, mas havia o alto paredão da serra marítima a vencer, inutilizando qualquer tentativa de veiculação em carros de motor animar. De referência aos Estados de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso, ao longo do século XIX, são também as tropas e os carros de bois que, de acordo com as zonas e os usos locais, não só se encarregam dos transportes rurais. E, a estas alturas, já também de mercadorias de importação e exportação, tanto em pequenos como em grandes percursos (como o sal). São unânimes os testemunhos desse aspecto da vida do nosso imenso sertão do oeste.

No final do século XIX, vieram os cavalos para puxar carros, carroças e carruagens, e o carro de bois foi proibido por lei de transitar no centro das cidades, ficando o seu uso restrito ao meio rural.

Neste período, pelas ruas da capital iam e vinham os carros de bois, gemendo pelos morros, a transportar mercadorias. E assim seguiram a despeito das muitas notícias de sua “aposentadoria”.

Bernardino José de Souza transcreve carta de Luís Amaral, de 23 de abril de 1942 em que ironiza as notícias de desaparecimento dos carros de bois:

“Embora há cerca de quinze anos se houvesse transportado solenemente para o Museu do Ipiranga, num Thornycroft estrangeiro, o ‘último’ carro de bois de São Paulo, os carretões e os carros de mesa ainda gemem vagarosamente em quase todos os municípios paulistas, inclusive no da Capital, a cujas pontas de rua chegam até hoje. Quanto ao interior, os carreiros ainda têm o prazer de – botando de lado as outras, por demasiadas – atrelar apenas a ‘junta do coice’ aos ‘V8’ paralisados nos atoleiros e recusar orgulhosos a gorjeta, sem se esquecer de, mais tarde, dobrar a ração de restolho a seus bois valentes”.

Na referida obra ficamos sabendo ainda que em 1939, em São Paulo “os 4.142 carros de bois recenseados, confirmando as palavras do ilustre escritor (Luís Amaral), constituem a prova mais evidente de sua relevância, na economia do mais progressista Estado da União.” .

E acrescenta uma reminiscência pessoal:

“…em fins de 1929 viajávamos de Araxá, em Minas Gerais, para a capital de São Paulo, que íamos ver, observar e admirar pela primeira vez. Ao atravessarmos numa soberba ponte metálica o caudaloso rio Grande, penetrando o território paulista, a primeira coisa que vimos da janela do vagão, à beira mesmo do grande rio, foi um carro de bois, de todo em todo semelhante aos do Nordeste. Surpreendeu-nos o velho veículo naquele lugar, pois havíamos lido a notícia do recolhimento ao ‘Museu’ do último carro de bois de São Paulo. A trasladação feita na trepidante capital não tinha senão um valor simbólico”.

História Geral da Agricultura Brasileira – v 160 da “Brasiliana”.

Não é demais reafirmar que, introduzidos que foram no Brasil pelos portugueses, seguiram, e seguem ainda, uma trajetória contínua. Se até à década de 20 do século passado era por seu intermédio que mercadorias essenciais (como farinha de trigo, sal, querosene, entre tantas) eram levadas para serem vendidas no comércio de locais não tão longínquos, hoje ainda, aqui bem perto da 3ª ou 4ª maior cidade do mundo, consorciados a outros tipos de veículos, apresentam-se como suportes indispensáveis às lides rurais em que a fisiografia seja desafiadora.

Os transportes motorizados aceleraram o processo de decadência dos carros de bois, aqui como em outras partes do mundo. Contudo, artesãos continuaram a construí-los e a aperfeiçoá-los e, graças a essa gente, este veículo persiste em sua marcha modorrenta pela história. Prestando serviço ou encantando. Servindo cantando.

Toninho Macedo

Setembro 2013

– Ciclo do carro de bois no Brasil, de Bernardino José de Souza

– Diálogos das Grandezas do Brasil – Ambrósio Fernandes Brandão

– História do Café – Taunay

– Percepções do espaço-tempo brasileiro: O rancho em um lugar brasileiro – Margarida do Amaral Silva

Fotos:Reinaldo Meneguin

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Ocorrência: Região de Bauru: Boracéia, Cafelândia, Getulina, Sabino.

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