Folguedos e Danças – Projeção estética e comunicação sem fronteiras

Projeção estética e comunicação sem fronteiras.(*) 

”Sendo o realismo considerado padrão de teatro sério, foi fácil rejeitar formas de divertimento populares tidas como exóticas e encantadoras. Mas também como teatro fundamentalmente insignificante.”  

(B. Macnamara-1977) 

“Mas com o tempo a simbiose cabocla, mulata ou cafuza foi prevalecendo em todos os campos da vida material e simbólica; na comida, na roupa, na casa, na fala, no canto, na reza, na festa, … ”  
(Bosi) 

Neste tópico farei considerações sobre o que se convencionou chamar projeção estética de folclore, buscando explicitar as bases de uma parte considerável de nossa produção cênica, especialmente no universo da dança, situando-as no contexto da cultura brasileira que motivou, antes e concomitantemente ao nosso lastro de criações, que inspirou movimentos e tendências de igual teor. 

Apresentarei, também, uma abordagem da dança brasileira, pelo viés da tradicionalidade, apontando-lhe peculiaridades no como a mesma se inscreve em nossos corpos. 

Por fim apresento a conceituação de Balé Folclórico, apresentando o organograma e processo de trabalho daquele passou a ser o carro chefe de nossa atuação.  

Considerações Gerais 

Antes de abordar de forma mais direta o tema projeção estética das danças folclóricas, e até mesmo para situá-lo melhor, desejo fazer algumas considerações sobre a necessidade que se observa entre os artistas de, tempos em tempos, voltarem-se para suas culturas nacionais, suas “raízes”. A busca de suas identidades, de auto- reencontro,como aponta Aracy Amaral. 

 Ao que tudo indica essa necessidade que, tempos em tempos constituiu-se em verdadeiras vagas, tem seu ápice em momentos de crises nacionais ou de falta de perspectivas para a criação artística, assumindo freqüentemente conotações político/ideológicas, não raro de caráter nacionalistas, o mais das vezes de bases transformadoras, estimulando buscas, muitas vezes, além das próprias fronteiras nacionais.  

 “Como pensar as inovações do cubismo sem os empréstimos de Picasso (tomados) à arte africana?” nos pergunta Ana Maria Belluzzo na coletânea Modernidade: Vanguardas Artísticas na América Latina, em cujo artigo Os Surtos Modernistas, comenta o fato e aponta: 

“Assinala Hobsbawn, em estudo sobre a arte na sociedade européia da época das revoluções, que a busca da origem, em tempos remotos, do homem primitivo, do índio americano, a representação do camponês e do artesão pré-industrial, seus costumes, o patrimônio cultural representado pelo acervo de canções e mitos, os estudos da linguagem, prestaram-se à construção do povo/nação e tiveram seu caráter revolucionário”. (BELLUZO,1990).  

E mais adiante: 

 “Um século depois, vindo o ciclo inicial de especialização das vanguardas européias, as vanguardas latino-americanas tecem afirmativamente a cultura em seus países, realizam um esforço de síntese cultural”.  

Necessidade que foi, igualmente, das preocupações fundamentais dos nossos românticos, como assinala Mônica Pimenta Velloso em As Tradições Populares na Belle Époque Carioca (FUNARTE).  

“Através da temática do indianismo, seguida pelo sertanismo e caboclismo, temos uma auto- avaliação positiva da cultura brasileira, quando em confronto com a européia. Defendendo a nacionalidade literária, Gonçalves Dias, José de Alencar, Gonçalves Magalhães propõem a pesquisa de nossos usos e costumes expressos nas tradições populares. É a originalidade da civilização brasileira que importa resgatar através dessa literatura inspirada no folclore. O momento é de auto-afirmação das nossas raízes culturais”. 

E, por mais paradoxal que possa parecer, esta passa a ser também, no início do século XX, uma das preocupações dos artistas de vanguarda do pós guerra: buscavam inserir as culturas populares de seus países em perspectivas internacionais. Músicos como Bella Bartok (1881-1945), Manuel de Falla (1876-1946), Strawinsky (1882-), e o próprio Vila Lobos (1887-1959), entre tantos, assimilaram em suas composições, reconhecidas internacionalmente, elementos de seus folclores nacionais. 

Foi também a época da grande virada na arte de toda a América Latina, o advento de seu modernismo.  

Curiosamente a maioria dos artistas que provocaram essa “revolução artística e cultural”, estava em profunda sintonia com os meios de produção artística europeus, notadamente com o círculo de Paris (denominação de Aracy Amaral), para onde muitos deles afluíram em busca de aprendizado e conhecimentos. 

Aponta Aracy Amaral no artigo As Duas Américas Latinas ou três, fora do tempo, no já citado estudo sobre o Modernismo: 

“Se Noé lembra que Rivera descobriu o México em Paris, ‘umbigo do mundo’, segundo Oswald de Andrade, o mesmo poderíamos dizer de Wifredo Lam (cubano), que tem a revelação de sua ancestralidade africana na capital francesa a partir do contato com Picasso e a arte africana. O mesmo pode-se dizer também de Tarsila, que começa seu processo de focalizar o Brasil mágico e ancestral a partir de Paris, onde ela produz, 1923, a Caipirinha A Negra, esta última peça antológica de sua produção dos anos 20. Sempre me pareceu um enigma, igualmente, os caminhos de um artista considerado paradigmático do construtivismo na América Latina, o uruguaio Torres Garcia. Depois de uma vida profissional na Europa- onde reside durante 43 anos, com breve estada nos Estados Unidos, ao retornar ao Uruguai vai observar com curiosidade a cultura, não a de seu país, atlântico e europeizado na capital, país de história praticamente posterior à colonização espanhola, mas a cultura do altiplano peruano- boliviano, do império inca, para formular sua teoria construtivista, de fundo simbolista”.  

Mas, como ter-se-ia dado esta inoculação de motivações nacionalistas em tantos de nossos artistas, de procedências tão variadas, exatamente no momento em que se encontravam tão distantes de suas pátrias? 

É sabido que no início deste século, muitos dos mais inquietos artistas europeus, vivendo em Paris, buscavam se libertar das sugestões das artes egípcia e clássica e dos cânones renascentistas que ainda perpassavam pelas academias. Buscavam igualmente libertar-se das influências do próprio Impressionismo. 

Eis que o contacto com a arte africana que passava a ser admirada em Paris (por volta de 1906/1907) põe em sobressalto essa comunidade artística. E artistas do peso de Picasso, Bracque, Matisse, Fernand Léger, os fauvistas em geral, são tomados por um significativo sentimento de admiração por este “universo primitivo” que lhes indica novas possibilidades em suas criações. 

Isto não deixaria incólumes os artistas latino-americanos, que com eles conviviam: Começam a perceber que o caminho que buscavam não estava mais na Europa. E chegam à conclusão de que as bases que buscavam para o novo, estava a sua espera em seus locais de origem. 

 “No primeiro momento, a visão distanciada é fecunda para o artista americano situado em patamar europeu. Num segundo momento, as diferenças culturais internas tornam-se visíveis e se oferecem como materialidade lingüística para a elaboração artística. O trabalho erudito manipula elementos de tradições populares, expressões primitivas, reconhece signos da cultura negra, cabocla, do passado indígena. Aproxima o urbano e o rural, o caipira e o operário.” (Beluzzo) 

Aos poucos voltam todos. E, do México à Argentina, desencadeiam sérias transformações na arte latino-americana. 

É neste clima de pós-guerra, reviravoltas nas artes européias e sintonia com suas vanguardas artísticas, de centenário da independência política do Brasil (1922) que tem início à maior guinada conhecida pela arte e cultura brasileiras – desaparece o interesse pelos modelos europeus, voltando-se os olhos para nosso “material bruto”, e não mais para a cultura européia. 

Néstor García Canclini em La Modernidad después de la posmodernidad, comentando a virada provocada pelo Modernismo na América Latina cita Aracy Amaral: 

Lo moderno se conjuga con el interés por conocer y definir lo brasilenõ. Los modernistas bebieron en fuentes dobles y enfrentadas: por una parte, la información internacional, sobre todo francesa; por otra, ‘un nativismo que se evidenciaría en la inspiración y búsqueda de nuestras raíces (también en los años 20 comienzam las investigaciones de nuestro folklore}’. Esa confluencia se observa en Cinco Moças de Guaratinguetá, de Di Cavalcanti, donde el cubismo da el vocabulario para pintar mulatas, también en las obras de Tarsila, que modifican lo que aprendió de Lhote y Léger, imprimiendo a la estética constructiva un color y una atmósfera representativas del Brasil”. 

Tem início um fecundo, e longo, período de surgimento de obras inspiradas nos mais variados motivos de nosso folclore/cultura popular nas artes plásticas, na literatura e na música. 

Doravante a cultura nacional (alguns prefeririam dizê-lo no plural) passa a ser tomada como fonte importante de inspiração, vista como peça fundamental e sem subestima perante a cultura européia. 

Entretanto se o período compreendido entre à Semana da Arte Moderna até à década de 60, foi de grande fecundidade para a projeção estética na literatura, música, artes plásticas (e até mesmo no surgente cinema nacional), quase nada revelou na projeção estética em dança.  

Para ilustrar o que, paradoxalmente, continuou a acontecer com a dança nestes 40 anos faço citação do pioneiro nas investigações sobre a projeção estética no Brasil, Paulo Carvalho Neto (Folclore e Educação): 

“Depois de 1934, quando as primeiras danças folclóricas começavam a ser aplicadas à Educação Física no Brasil, até 1952 predominou o gosto pelas danças internacionais. Considerava-se de menor beleza as danças brasileiras em relação às de fora, porque ouvidos, corpos e pensamentos não tinham ainda aprendido a sentir o que é da terra e o espírito de brasilidade não havia amadurecido neste setor”. 

Na década de 50 com a atuação da Profa.Maria Amália Correa Giffoni (falecida em Dezembro 94), oficializa-se a Cadeira de Danças Folclóricas na Escola de Educação Física da Universidade de São Paulo. (A Cadeira, segundo nos consta, teria sido extinta depois da aposentadoria da Mestra há aproximadamente 10 anos). De suas experiências surge, em 1955, o livro Danças Folclóricas Brasileiras com finalidade precípua de subsidiar a prática da dança folclórica como suporte às atividades educativas. 

Mas é bom também registrar que foi neste período, 40 anos anteriores aos anos 60, que surgiu entre nós a primeira experiência de projeção estética na dança: Na década de 40 apareceu em cena Felicitas, bailarina e coreógrafa carioca. 

 Pelo depoimento de Paschoal C. Magno ela teria criado em 1948 o 1oBallet Folclórico do Brasil “composto de negros que ao som de tambores contavam, dançando, as lendas colhidas por Felicitas na sua longa viagem de sete anos através do Brasil”.  

Com este grupo veio-lhe a fama e o pedido de coreografias para o cinema e o teatro. Ainda pelo depoimento de Paschoal, em 1957 Felicitas dançou “motivos brasileiros” no Teatro Isadora Duncan, em Paris, tendo 

 sido bisada 7 vezes.  

Também escreveu um livro, Danças do Brasil, sem pretensões etnológicas, em que descreve o que viu Brasil afora, e que serviu de base, de inspiração para o seu trabalho coreográfico. 

Ainda na década de 40, Barbosa Lessa e Paixão Cortez, ainda estudantes, entre outros, desencadeiam um movimento de revivescência. No Rio Grande do Sul, que ficou conhecido como tradicionalismo. Deu origem aos CTGs, que se espalharam por todo o Brasil, e às dezenas de festivais hoje existentes no sul. O movimento pede considerações que este trabalho não comporta. 

Os anos 60 voltam a aguçar os ânimos nacionalistas. E, parece-me, que em várias partes do mundo. Como confirmação grande parte dos balés folclóricos de países da Europa, do antigo bloco socialista e mesmo da América Latina estão hoje nos limites dos 30/35 anos. 

Em Recife, João Goulart, presidente, e Miguel Aires, governador, foi criado em 62 o Movimento de Cultura Popular (que teve como antecedentes o Teatro Experimental de Cultura e o Teatro do Povo que contaram com expoentes como Luiz Marinho, Luiz Mendonça e Hermilo Borba Filho, entre outros), sociedade Civil mantida pela prefeitura, sob o lema maior de educar para a liberdade, postulando o “desenvolvimento de uma cultura mais autenticamente nacional, buscando as raízes da cultura brasileira onde elas se encontram, no meio do povo”.  

Reuniu gente de peso. As atividades, as mais diversas, do teatro, à música, à dança, apoio aos grupos populares, apresentação de grupos folclóricos e uma busca de interpretar a cultura popular através de pesquisas de campo.  

“Não nos debruçamos sobre o povo para auxiliá-lo. Nós nos voltamos para o povo para aprender”, afirmou Germano Coelho apresentando o norte da abordagem que o grupo fazia, e dissecada no capítulo 4 desta tese. 

Concomitantemente a UNE, inspirada no MCP nordestino, cria no Rio de Janeiro o CPC. Se tinham em comum o acercamento da cultura popular, a forma de abordá-la e sua atuação eram diametralmente opostas. O CPC na busca de atingir de forma marcante e incisiva o trabalhador, o cidadão comum com uma arte que de certa forma sacudisse o público destinatário, reconheceu a importância a necessidade de se servir da “arte popular” como meio, como pretexto. Em seu famoso, e hoje, a meu ver, questionável, manifesto reconhece no folclore, na cultura do povo, o manancial que poderia alimentar a criação da sua Arte Popular Revolucionária. Mas não sem antes caracterizá-la de forma bastante etnocêntrica: 

 “…com efeito, a arte do povo é tão desprovida de qualidade artística e de pretensões que nunca vai além da tosca e desajeitada forma de exprimir fatos triviais dados à sensibilidade mais embotada. É ingênua e retardatária e na realidade não tem outra função que a de satisfazer necessidades lúdicas e ornamentais…” 

As chamadas “formas populares” interessavam-lhes, e muito. Mas somente enquanto elemento facilitador da comunicação com um público maior. Tratava-se de usá-las recheando-as “com o melhor conteúdo ideológico”.  

E foi exatamente neste contexto que começaram a surgir, Brasil afora, grupos que passaram a se dedicar à projeção estética das danças folclóricas e de folclore na dança (muitos deles sob inspiração da atuação do MCP).  

Alguns se consolidaram, amadureceram, e se transformaram em Cias de Dança ou Balés Folclóricos (denominação adotada internacionalmente para grupos com estas características), e contam hoje com a idade aproximada de seus pares internacionais. Outros vêm surgindo e seguindo as mesmas trilhas. São tantos e respeitáveis, que prefiro não denominá-los para não cometer inevitável injustiça. 

No Norte e Nordeste do Brasil consagrou-se a denominação para-folclórico para designar grupos que se dedicam à projeção. 

Atuando lado a lado dos grupos folclóricos, ou grupos rituais (como os designam Carlos Brandão e Cássia Frade). No geral dedicam-se a mostrar uma única dança, ou manifestação, de determinado ciclo cultural, do seu estado ou de uma determinada região do mesmo, e acabam muitas das vezes, por ocuparem o lugar daqueles. 

Projeção Estética 

Tenho para mim que ainda não se encontrou denominação adequada para este tipo de trabalho/atividade artística. As que vêm sendo utilizadas (aproveitamento, reelaboração, aplicação ou projeção de folclore) só são de fácil compreensão junto aos círculos de pesquisadores e especialistas. No geral são recebidas sempre  com muita estranheza, necessitando sempre de muitas explicações. Sinal de que não conseguem comunicar de forma fluída, direta o que se pretende.  

Portanto, ao utilizar “projeção estética” ou “projeção cênica” de folclore, o tenho feito de forma provisória. 

Tenho insistido muito nos últimos tempos que Folclore/ Cultura Popular não se inventa, não se cria em prancheta. Ou existe em algum lugar resultante de vivências, de determinados grupamentos humanos, com função específica ou múltipla (religiosa, social, de lazer…) e sem rótulos (exótico, primitivo, autêntico…), ou é aproveitamento, projeção ou aplicação de folclore (ou outro nome que o valha). Ou seja, aquelas manifestações praticadas espontaneamente, sendo utilizadas em cena, na música, nas artes plásticas ou na literatura, com funções distintas das originais.  

De qualquer forma, não dá para fazer um trabalho de aproveitamento ou recriação, sem a observação sistemática das manifestações “acontecendo de verdade”, ou sem tê-las vivenciado. 

Portanto a pesquisa é capital para o trabalho dos balés folclóricos. Não dá para fazer trabalho sério prescindindo dela, ou sem a assessoria de especialistas. 

Observação de vários grupos que pratiquem a mesma dança ou folguedo, apontando-se-lhes as variações. Pesquisa bibliográfica através da qual procure-se entender seus componentes históricos, bem como sua ocorrência e variações em outras regiões.  

Evidente que estas manifestações não se processam no palco como no dia-a-dia. No palco, elas têm uma função cênica, estética e assim sendo, foram adequadas a uma linguagem cênica. Como diz Paulo Carvalho Neto a projeção “por sua própria natureza, é uma transformação”.  

E ainda: 

… “há projeção sempre e quando o aproveitador desfigurar o material com intenção de torná-lo ‘mais bonito’, vertendo sobre ele a sua inspiração pessoal, quer seja de artista plástico, poeta, romancista ensaísta”. (NETO,1981) 

No caso dos balés folclóricos o ideal é buscar não reproduzir em cena manifestações particularizadas, como ocorrem em tal grupo ou coletividade. Será interessante buscar-se através da análise de vários exemplares, entender como ocorrem no seu geral. Assim serão buscados os elementos constitutivos pertinentes e caracterizadores de cada dança ou folguedo, bem como os traços individualizadores, as variações de grupo para grupo.   

Por fim se a projeção estética é por si só transformação é impossível pensar-se um trabalho de criação mediatizada, sem contacto com as fontes, ainda que por meio de registros bem feitos. Portanto, é inconcebível a prática que vem se estabelecendo entre alguns grupos: “a troca de coreografias”, verdadeira “compra e venda” de gatos por lebres.  E, como bem diz o ditado, quem conta um conto aumenta num ponto, não é difícil imaginar-se os desfechos. Não há como beber direto da fonte, através da pesquisa de campo. 

Muitos são os exemplares que poderiam ser citados para ilustrar esta tendência que na década de 60 dominou grande parcela da produção e dos compositores de peso da música brasileira: recorrer à Cultura Popular como fonte de inspiração.  Popular Brasileira (MPB). (foi exatamente na década de 60, que surgiu tal denominação que designava exatamente a produção musical que passava a ser tratada como “produto cultural”, “mercadoria“, “manifestação de consumo“. 

Se tal prática não era nova, inserida no contexto da época revestia-se, então, de alguns aspectos novos (como se verá adiante), que tiveram como principal tribuna os festivais que se celebrizaram. Destaquem-se os Festivais da Record, da Excelsior e o FIC. 

 Para tentarmos entender tal fato em sua prática rotineira, bem como o seu acirramento em momentos especiais, comecemos por ter em conta que a mesma está via de regra ligada a movimentos ou posturas nacionalistas, de busca, explicitação ou ratificação de identidade de um povo, de uma sociedade, em determinadas situações, por um determinado tempo. 

Nacionalismo como definido por mestre Aurélio –  

“preferência determinada por tudo o que é próprio da Nação a que se pertence; patriotismo; doutrina política baseada na aspiração do ressurgimento das tradições nacionais; reivindicações políticas das nacionalidades submetidas à opressão estrangeira; política de nacionalização de todas as atividades de um país- indústria, comércio, artes etc.” 

Foi com esse impulso que os Kwaitianos, quando da derrota de Saddan Hussein na 1ª guerra do Golfo, foram para as ruas cantando e dançando temas de seu folclore e empunhando as cores nacionais. Comemoravam. E ao mesmo tempo buscavam reforçar o sentido de unidade, de coesão e de identidade.  

Exemplo parecido nos dá Carlos Rodrigues Brandão. Em uma de suas pesquisas, “tromba” com um búlgaro em Pirenópolis. Encontro e papo de que se serve, com muita propriedade, para iniciar seu livro “O que é Folclore”. O seguinte trecho nos ajuda a entender um pouquinho mais esta questão do Nacionalismo: 

 “Em quase mil anos de história os búlgaros tiveram poucos anos de uma verdadeira independência nacional. Eles foram seguidamente dominados por outros povos e, assim, uma boa parte da vida da Bulgária dividiu-se entre o domínio estrangeiro e a luta contra ele. As cidades e aldeias do país eram proibidas de usar sequer e colocar nas ruas os sons e as cores da Bulgária: hinos, bandeiras, a língua – os símbolos coletivos da afirmação ancestral de uma identidade de pátria, de povo. Então, quando foi perigoso hastear nos mastros os panos com as cores do país, rezar nos templos ortodoxos as suas crenças coletivas, ou enterrar os mortos com os seus cantos de tristeza, os búlgaros aprenderam a ler a sua própria memória nos pequenos sinais da vida cotidiana: costume, objetos e símbolos populares.” 

E o búlgaro conclui: 

 “Eu acho que durante muitos e muitos anos as nossas bandeiras eram as saias das mulheres do campo e os livros eram canções de ninar.”  

(Sintomaticamente que a Bulgária hoje é um dos países que busca manter um maior número de companhias estáveis que se dedicam a divulgar suas tradições – os chamados Balés Folclóricos).  

Mais recentemente, entre nós, temos assistido à reabilitação do verde-amarelo. Tal associação cromática durante muito tempo foi considerada padrão de mau gosto, cafonice, o mesmo se poderia dizer em relação a execução do hino nacional.  

Entretanto, desde a campanha pelas Diretas- já, passando pelas comemorações das vitórias de Airton Senna e da própria Seleção Brasileira, vem se resgatando o valor do verde-amarelismo, o momento fez com que  

todos – todos – para ele se voltassem. Foram resgatados como símbolo.  

Em seu livro “Momentos de Música Brasileira”, ao falar sobre a Evolução do Nacionalismo, a professora Lea V. Freitag citando Dante Moreira Leite (Caráter Nacional Brasileiro) aponta:  

“analisando a consolidação do Nacionalismo Musical em diversos países (Alemanha, Hungria, Polônia, Checoslováquia, Noruega, Dinamarca, Finlândia, Espanha) a partir do século XIX e XX, constatamos, na maioria das situações, a busca da auto-afirmação face ao expansionismo de outros países”.  

E acrescenta ainda,  

O nacionalismo liga-se, na Europa, e também no Brasil, aos movimentos liberais, e foi muitas vezes reivindicatório, caracterizando-se como tentativa de independência nacional para grupos englobados em antigos Estados.” 

Por este prisma, quem cria, quem comunica (o artista, o comunicador) o que pretende ao se utilizar destes elementos que permanecem como que esquecidos nos “cantinhos” das pessoas? 

– Despertar o sentimento de auto-afirmação, recorrendo-se a símbolos de coesão; 

– Provocar certa identificação projetiva ao se utilizarem de símbolos que falem para/e em nome de um maior número de pessoas; 

– Despertar a necessidade de resistência; 

– Buscar/oferecer “socorro” nos momentos de crise de identidade. 

E a prática vem mostrando que tais respostas são encontradas muito mais facilmente na fonte ou “reservatório” de imagens primordiais de um povo: seu folclore, sua cultura popular. Provavelmente parte constitutiva e essencial do Inconsciente Coletivo de Young.     

De uma forma geral a análise de vários exemplares da produção em questão nos sugere, para efeito de uma melhor compreensão, e, a grosso modo, o agrupamento de seus produtores em dois blocos básicos:  

a – O daqueles artistas que faziam um esforço concentrado para fixar uma expressão musical (mais que musical, artística) bem nossa, autônoma, projeção sonora e cultural de nossa terra, nossa gente. Busca de libertação de influências alienígenas. 

b – O dos artistas que, através de sua obra buscavam fazer a denúncia da precariedade social do povo brasileiro, da opressão contra as camadas subalternas da sociedade, os desmandos políticos e injustiças generalizadas. E por quererem atingir a um número muito maior, e diversificado, de pessoas buscaram se utilizar dos símbolos coletivos. Ou mesmo intuir tais símbolos. 

Ainda da década de sessenta, com a ascensão midiática e consagração da MPB (Música Popular Brasileira), reacendem-se estes arroubos nacionalistas através da apropriação de uma temática popular, nordestina ou de outra parte do Brasil, trabalhando-se estes conteúdos no sentido de se valorizar sua força conotativa. Ganhavam assim uma possibilidade de maior abrangência. Buscavam criar símbolos de comunicação mais identificados com a nossa realidade, engajados. E assim criaram uma música mais participante. 

Opuseram-se à invasão da música e cultura americanas, identificadas como símbolo de opressão, do que ficou chamado de “colonialismo Yankee”, sob a égide da Guerra do Vietnã.  

Polarizaram, enfim, as discussões na oposição instrumentos acústicos X instrumentos amplificados/elétricos. A música produzida com a ajuda daqueles, mais nossa, genuína, produzida com a ajuda destes, “estrangeira”.  

E eis que naquele momento, descobriram o símbolo maior de nossa música, a viola caipira. Pelo menos para aquele momento. 

Um exemplo lapidar e inquietante de projeção estética é o antológico espetáculo Cobra Norato com o qual o Grupo Giramundo celebra sucesso e reconhecimento pela crítica há quase 3 décadas. Continuam, nestes tempos de globalização, a encantar e hipnotizar as platéias com o ilusionismo da manipulação que dá vida a bonecos em cena, e a estória do indiozinho que quer se casar com a filha da Rainha Luzia.  

A que se deve o sucesso e a permanência do espetáculo?  

Credito à felicidade de um casamento triangulado: De um lado a magia inerente aos bonecos (o boneco levado a sério em cena, sempre encanta), de outro à seriedade do Giramundo, à sua competência técnica e acuramento estético (tudo muito bem planejado e cuidado, da construção e manipulação dos bonecos, à luz e trilha sonora) e, por fim, à importância do poema de Raul Bop para a cultura/ arte brasileira.  

Aqui valeria a pena destacarem-se algumas coincidências.  

Em 1978, ao se decidir pela montagem, entre outros objetivos, o Giramundo pretendia:  

“… produzir um espetáculo de teatro de bonecos essencialmente brasileiro. Daí a escolha: Cobra Norato, o mais brasileiro de todos poemas até aqui escritos. Comemorar os 50 anos do manifesto Antropofágico e homenagear o autor Raul Bopp pelo grande legado à poesia autenticamente brasileira.” 

A Missão surgiu das águas da Semana de 22 (1) e da necessidade de conhecer o Brasil que a mesma inoculou nos artistas e intelectuais brasileiros, os chamados modernistas. O projeto nacionalista (2) modernista esboçado então e que a princípio punha ênfase em objetivos estéticos (criar uma arte com feições brasileiras), progressivamente adquiriu um teor ideológico. Passam a promover incursões de cunho etnográfico pelo interior de São Paulo, e em 1924, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila, Paulo Duarte e outros modernistas, acompanhados do poeta francês Blaise Cendras, empreendem a Minas Gerais, durante a semana Santa, a visita que o grupo intitulou de Viagem de Descoberta do Brasil. Busca de símbolos de brasilidade, de identidade, de nação, de resistência, de nossas raízes que pudessem levar o artista a se comprometer, passar a expressar nossos valores, nossa realidade. 

Viajar para conhecer o Brasil levou muitos de nossos artistas ao interior de Minas, ao Norte e Nordeste. Ao “interior” do Brasil. O próprio Mário viajou algumas vezes com objetivos investigativos e acalentou por quase 10 anos, com um grupo de intelectuais paulistas, o sonho de empreender jornadas de pesquisas sistematizadas. Tal afã resultou, em 1936, na fundação da Sociedade de Etnografia e Folclore, congregando vários artistas e intelectuais proeminentes, com intenção de, sob orientação de Dina Lévi-Strauss, “fornecer orientação metodológica e científica aos estudos específicos da área no Brasil”. 

No primeiro semestre de 1938 o sonho se efetivou: 

“Munidos da melhor tecnologia que a época dispunha, os quatro integrantes da MPF prepararam-se para gravar, fotografar, cinematografar, recolher e descrever a maior quantidade de manifestações populares que encontrassem nas regiões brasileiras percorridas”. (Carlini)  

Os quatro integrantes (Luiz Saia, Maestro Martin Braunwieser, Benedito Pacheco, e Antônio Ladeira) haviam sido preparados para as coletas de campo. Partindo de navio do Porto de Santos com a enorme tralha de equipamentos e materiais, o grupo fez o roteiro terrestre, por vezes longos percursos diários, em cima de um caminhão.  

Percorreram, de fevereiro a julho os Estados de Pernambuco, Paraíba, Ceará, Piauí, Maranhão e Pará. O resultado final, um considerável acervo sob custódia da Discoteca Pública Municipal foi, em grande parte, sistematizado por Oneyda Alvarenga. 

Embutido na necessidade de descobrir o Brasil, de documentar nosso folclore, estava um esforço de síntese cultural. A simbiose cabocla, mulata ou cafuza lembrada por Bosi. 

Isto fica bem evidenciado na vida e na obra de Raul Bopp. Gaúcho, neto de imigrantes alemães, Bopp cedo antenou-se com o ideário da Semana de 22 e radicalizou-o. Tendo ingressado no curso de Direito em seu Estado, transferiu-se para o Recife, onde cursou o terceiro ano, o período seguinte em Belém, terminando o curso no Rio de Janeiro. Sempre ávido por conhecer o Brasil, aproveitava as folgas dos seus estudos para fazer incursões às regiões e estados limítrofes. Seu enveredamento pela Amazônia o toma de tal forma, que lhe/nos rendeu Cobra Norato, seguidas vezes refeito.  

O período compreendido entre a Semana da Arte Moderna até à década de 60, foi de grande fecundidade para a projeção estética na literatura, música (principalmente a erudita), artes plásticas e até mesmo no surgente cinema nacional.  

Tem início um fecundo e longo período de surgimento de obras inspiradas nos mais variados motivos de nosso universo simbólico popular, nas artes plásticas, na literatura e na música. Doravante, a cultura nacional (alguns prefeririam dizê-lo no plural) passa a ser tomada como fonte importante de inspiração, vista como peça fundamental e sem substima perante a cultura européia.  

Lo moderno se conjuga con el interés por conocer y definir lo brasilenõ. Los modernistas bebieron en fuentes dobles y enfrentadas: por una parte, la información internacional, sobre todo francesa; por otra, ‘un nativismo que se evidenciaría en la inspiración y búsqueda de nuestras raíces {también en los años 20 comienzam las investigaciones de nuestro folklore}’. Esa confluencia se observa en Cinco Moças de Guaratinguetá, de Di Cavalcanti, donde el cubismo da el vocabulario para pintar mulatas, también en las obras de Tarsila, que modifican lo que aprendió de Lhote y Léger, imprimiendo a la estética constructiva un color y una atmósfera representativas del Brasil”.  

     (CANCLINI- in Aracy Amaral, in La modernidad después de la modernidad.)  

O certo é que, de tempos em tempos, se observa entre os artistas a necessidade de se voltarem para suas culturas nacionais, suas “raízes” em busca de suas identidades, de auto-reencontro (como aponta Aracy Amaral). Ao que tudo indica essa necessidade que se constitue em verdadeiras vagas, tem seu ápice em momentos de crises nacionais ou de falta de perspectivas para a criação artística, assumindo freqüentemente conotações político/ ideológicas, não raro de caráter nacionalista, o mais das vezes de bases transformadoras.  

Assim nos anos 60 os ânimos nacionalistas voltaram a se aguçar. E desta vez mergulhando em nosso universo simbólico, identitário, dele se servindo para expor nossa diversidade cultural e contradições sociais.  

Semana de 22 deu o pontapé decisivo para a constituição da moderna cultura brasileira e os movimentos da década de 60 consolidaram-na. Se a partir daquela entraram em ebulição a literatura, a música erudita e as artes plásticas, a partir destes o teatro, o cinema, a dança e a música popular. Tomou forma e ganhou projeção a MPB, em suas múltiplas vertentes. Nasceu inclusive a sigla, que se consagrou e se impôs, discutindo-se o conceito de popular/ brasileiro.  

Em sua criação os artistas passaram a fazer um esforço concentrado para fixar uma expressão musical (mais que musical, artística) bem nossa, autônoma, projeção sonora e cultural de nossa terra, nossa gente. Busca de libertação de influências alienígenas. Opuseram-se à invasão da música e cultura americanas, identificadas como símbolo de opressão, de colonialismo. Frequentemente através de suas obras buscavam fazer a denúncia da precariedade social do povo brasileiro, da opressão contra as camadas subalternas da sociedade, os desmandos políticos e injustiças generalizadas. E por quererem atingir a um número muito maior e diversificado de pessoas buscaram se utilizar dos símbolos coletivos, apropriando-se de temáticas populares, nordestinas ou de outra parte do Brasil, trabalhando seus conteúdos e valorizando seus vieses conotativos. E assim criaram uma música mais participante. Elegeram como símbolo maior da brasilidade a viola caipira que passou a ser usada com insistência nesta nova música que surgia. E deram a ela, e às modas de viola um sentido mais universalista, explorando-se sua sonoridade e seus recursos técnicos.  

Começamos falando do retorno do Giramundo a São Paulo e das condições em que se deu esta volta 20 anos depois. Na realidade o que se nota neste fim de milênio é um reacender do interesse pelo material identitário. 

Seria atração pelo exótico? Esgotamento dos modelos massivos? Descoberta e respeito pelas diferenças, diversidade? 

Tudo é possível. 

Recentemente, a magia dramartúrgica de Altimar Pimentel transformou a pesquisa de Souto Maior, Como nasce um cabra da peste, sobre sabedoria e tabus populares nordestinos, em texto teatral. Rendeu um espetáculo marcante, aplaudido, inclusive no exterior, e que tem levantado boa parte das premiações e críticas por onde passa. 

E até mesmo as peculiaridades regionais de São Paulo (e são tantas) também começam a despertar artistas paulistas. 

No Mapa Cultural Paulista de 1998, projeto anual da Secretaria de Estado da Cultura do Estado de São Paulo, que contempla a produção artística do Interior de São Paulo, destacou-se o Grupo Andaime de Teatro – UNIMEP com o espetáculo Lugar onde o peixe pára, tendo como tema as tradições de Piracicaba. (Outros espetáculos, oriundos de outras regiões do Estado, fizeram o mesmo). A par de uma série de soluções cênicas muito interessantes, o espetáculo apresentava uma série de problemas, nada disso contando, pois afinal o mesmo pegava o público de jeito pela singeleza e verdade do material etnográfico que sustentou a criação.  

Isto nos faz perguntar: – Que se passa com a comunidade dos humanos neste fim de milênio? O que leva um grupo de jovens, geração pós-Xuxa, techno/ house/ boquinha da garrafa a se curvar ante um espetáculo que, em tudo se distancia do seu universo cultural? O que faz com que o grupo Mestre Ambrósio, com sua reelaboração de Cocos, emboladas e outros ritmos pernambucanos embalar grandes parcelas de adolescentes jovens e adultos em São Paulo? 

O que temos notado, do sucesso do grupo de Piracicaba em Blumenau, dos Pernambucanos e tantos outros grupos de várias procedências na capital de São Paulo, na circulação de outros tantos grupos brasileiros pelo mundo, e na chegada de grupos do mundo ao Brasil, apontam para a mesma direção, já repisada em outros tópicos e que aqui resumimos. 

Ao contrário do que apregoam alguns teóricos da globalização, a criação artística quando se  utiliza de elementos identitários, consegue atravessar as fronteiras da língua, geográficas e sociais, e busca, consciente ou inconscientemente:  

Na contrapartida, os países socialistas mantêm várias companhias oficiais de danças folclóricas – os famosos “Balés Folclóricos” que viajam seguidamente pelo Ocidente, verdadeiros embaixadores culturais. 

Alguns destes países, como a Bulgária, mantém mais de uma destas companhias oficiais, todas elas bem longevas. 

E como se isto não bastasse, o interesse do público dos países capitalistas – e por isso de seus empresários – é sempre muito grande. Seja pelo gosto ao que chamam de “exótico” ou porque este tipo de cultura/linguagem consegue atravessar as fronteiras as fronteiras da língua, geográficas e sociais. 

De qualquer forma, a partir da década de 60, cresceu em todo o Brasil o interesse pelos grupos de projeção estética do folclore, começando, a partir de então, a surgir alguns grupos com trabalhos sérios em vários pontos do país. 

A preocupação em vários países do mundo com a busca de uma arte com traços indicadores de identidade cultural pode ser melhor aquilatada no nº 6 – ano II, do Correio da Unesco, dedicado aos “Teatros do Mundo”. 

(*) Texto originalmente inserido no Volume de Anexos da Tese de Doutorado Abaçaí Cultura e Arte- Caminhos e Trilhas de um Programa de Ação Cultural de Natureza Includente – Toninho Macedo – Escola de Comunicações e Artes-ECA- USP 

Foi também apresentado, como Comunicação, no XX Encontro Cultural de Laranjeiras – Toninho Macedo- SÃO PAULO, JANEIRO/95 

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