Caminhos Para a Construção da Cultura da Paz Por Meio da Educação

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Entendemos por cultura da paz a consciência permanente dos valores da não-violência social. A cultura da paz vai mais longe do que construir a paz. Cultura da paz não é simplesmente ausência de guerra. É diferente também de passividade e resignação. Ela não elimina oposições ou conflitos, mas pressupõe a resolução pacífica deles. E resolver os conflitos sociais de forma pacífica é uma mudança radical nos paradigmas que dão sustentação ao atual modelo civilizatório. Passo então a comentar alguns pressupostos definidores da cultura da paz apontados pela UNESCO. Vivemos hoje a possibilidade concreta de destruição das formas de vida, é a primeira vez que isso acontece no planeta. Outras civilizações anteriores não tinham esse poder de fogo. Criamos uma civilização que não respeita a vida, pois aprendemos a sujeitar a natureza aos nossos desígnios. Respeitá-la em todos os níveis é o inicio de uma cultura da paz. “Tudo que vive é o teu próximo”, disse Gandhi. Devemos desenvolver um amplo cuidado para com as crianças, com os idosos, com os pais e filhos, com a comunidade dos seres vivos, animais e vegetais, com o outro e com nós mesmos. A educação deve voltar-se para ensinar continuamente o respeito à vida.

Rejeitar a violência é a base da cultura da paz. Não só a violência criminalizada, passível de condenação judicial, mas também aquela naturalizada, não reconhecida pelos cidadãos, que passa distante do processo e da punição. Aquela presente nas relações autoritárias existentes na família, o despotismo no local de trabalho, as relações de caráter racista e sexista, que muitas vezes aparecem sutilmente na repressão e no terrorismo estatal e de grupos privados escondidas atrás de uma aparente “boa causa”.

A cultura da paz rejeita a violência física, sexual, étnica, psicológica, de classe, das palavras e das ações. Mesmo as metáforas bélicas, utilizadas para atingir objetivos comunitários ou empresariais, devem ser definitivamente banidas do dicionário da cultura da paz, pois o ponto de partida dessa cultura é a cooperação entre a comunidade dos seres vivos e o desenvolvimento interior das pessoas.

Já é o momento de se criar nas escolas amplos programas de cultura da paz, para formar uma nova geração de pacifistas, que saiba dialogar, negociar, argumentar e cooperar a partir de relações de amor com as pessoas. Verdadeiros agentes e mediadores da paz. Algumas experiências já em curso devem ser destacadas. O Instituto Palas Athena tem sido um ponto de referência decisivo para inspirar valores da cultura da paz no país, particularmente em São Paulo. O programa Gandhi e a Não-violência, dessa instituição, visa subsidiar educadores com experiências de resolução de conflitos e mostrar como o diálogo pode ser instrumento de convivência. Junto à Polícia Militar de São Paulo, à Polícia Civil e aos integrantes dos Conselhos Comunitários de Segurança Pública (Consegs), desenvolve o concurso Gandhi e a Não-violência que consiste na elaboração de uma redação que relacione não-violência e segurança pública tendo como base o pensamento de Gandhi.

A Paz Pede Parceiros reúne voluntários, artistas, professores e monitores em espaços públicos para realizar várias atividades baseadas na simplicidade voluntária, na cidadania responsável, na ética solidária e na valorização das diferenças. Por exemplo: dança sagradas e da paz, caminhada silenciosa, jogos cooperativos, expressões dos jovens etc.

A Aliança por um Mundo Responsável, Plural e Solidário, a Rede Mundial de Artistas e o Instituto Pólis têm realizado Conversas de Rua sobre a paz em diversos pontos da cidade de São Paulo. Trata-se de uma atividade que envolve a população em um diálogo sobre vários temas, todos destacando a arte como fator de união e estímulo. Da mesma Aliança, o projeto Tambores pela Paz tem feito soar a convergência e a solidariedade em muitos pontos do planeta. Em 21 de junho do ano passado, a Aliança estimulou e participou diretamente dos Tambores pela Paz: na África (através da Caravana Africana pela Paz), em Barcelona, na França, no Brasil (em todas as regiões da cidade de São Paulo, além de Maceió, Brasília e Rio de Janeiro). Os eventos artísticos simbólicos que podem reproduzir o imaginário da paz são muito importantes para criarmos um clima favorável ao surgimento dessa cultura.

Em São Paulo, no ano passado, a prefeitura realizou, com a coordenação da Aliança, o Psicodrama da Cidade, em 150 pontos do município. A idéia era desenvolver uma escuta da população sobre seus principais problemas, desafios e conflitos, e sugerir soluções.

O Fórum em Defesa da Vida, que reúne centenas de entidades da zona sul de São Paulo, tem realizado caminhadas públicas, ações nas escolas, denúncias etc. e tem se constituído em verdadeiro ponto de referência da cultura da paz para os movimentos sociais e a sociedade civil. Além de desenvolver atividades entre os estudantes e estimular o compromisso de professores e integrantes da polícia comunitária.

Mas vamos a outra chave para a criação de uma cultura da paz: a generosidade. Estamos, cada vez mais, perdendo a nossa capacidade de dar-se; encapsulados em nós mesmos, nos fechamos muito para os outros. Freqüentemente não temos valores próprios suficientes nem mesmo tempo para celebrarmos o outro. Justificamos tudo pelo medo, pela pressa, pela vida louca nas grandes cidades, esse compartilhar pouco o mundo cotidiano. Fico perplexo ao ver jovens cruzarem colegas ou professores na universidade, após conviverem juntos durante um semestre, e não celebrarem um bom-dia, a sociabilidade mínima do dia-a-dia. Felizmente o mundo ainda tem exemplos de generosidade: as mães, os seguidores de Gandhi, as pessoas espiritualizadas, aquelas de bom coração, pessoas comuns que encontramos diariamente, muitas ONGs, o trabalho voluntário, que se solidariza com os mais carentes e busca construir a paz, e muitos outros.

A educação deve preocupar-se em ensinar o jovem e a criança a dedicar parte do seu tempo e de seus recursos materiais ao cultivo da generosidade. Félix Guattari no seu último artigo, “Por uma refundação das práticas sociais”, propunha para a sociedade futura uma redefinição do tempo: um destinado à reprodução da vida material e outro à economia dos valores sociais e mentais.

Mas nada disso se tornará possível sem diálogos. O mundo está carente de escutas e diálogos. Mais ainda que dialogar necessitamos “interculturar”, ou seja, crescer através do diálogo com a diversidade, com a vivência, a visão de mundo e a razão dos outros. O nosso grande desafio é viver junto: conviver. “O futuro da Bósnia não é a tolerância, mas a convivência”, disse em Barcelona o prefeito de Sarajevo.

É muito limitado para superarmos o paradigma da cultura da violência pensarmos nos termos tolerância X intolerância. Quando toleramos não compreendemos nem compartimos. Portanto, a nossa educação deve-se voltar para nos ensinar a ser conviventes e não apenas tolerar. Uma cultura forte se constrói na dialogia, e é por isso que não há cidadania sem uma escuta das diferenças culturais. Um novo paradigma educacional terá que ser criado a partir da diversidade cultural e da escuta.

Na escola e na vida é necessário escutar silêncios, gestos, olhares, toques; eles podem nos dizer mais do que todos os discursos racionalmente bem articulados e retoricamente impecáveis.

Devemos nos empenhar em desconstruir o discurso monolítico do saber no interior das escolas, o autoritarismo de certo saber oficializado. Grande parte dos nossos professores ainda vive um mundo autoritário, de saberes formais e indiscutíveis.

O saber do futuro será multicultural, isto é, se complementará no outro, e ampliará a condição humana. Estabelecer trocas entre diferentes é uma chave para a formação: assim diminuímos nosso etnocentrismo e podemos ter visões e soluções que nos acrescentem humanidade. O jovem, por exemplo, pode conhecer jovens de outras escolas, da comunidade, participar de festividades de culturas diferentes, assistir a outros cultos religiosos, visitar quilombos e aldeias indígenas, ouvir estórias ancestrais e gêneros musicais novos, ampliando, assim, sua compreensão da pluralidade e seu repertório de valores humanos. Considero equivocado ensinar a criança e o jovem a manipular instrumentos tecnológicos sem contextualizá-los num cenário de vivências. Fala-se muito em inclusão digital, importante sem dúvida, mas ela não pode ser isolada dos contextos existenciais, vivenciais, presenciais da condição humana, sob o risco de prepararmos o jovem para o mundo tecnológico, mas não para um mundo mais humano.

Com a globalização vivemos a interdependência. A realidade e a ação não são mais globais, mas “glocais”, ou seja, locais e globais. O local é inseparável do global. Somos uma parte do todo. A metáfora do mundo não é mais a máquina, mas o holograma, como diz o físico Fritjof Capra (de holos, “todo” em grego), ou seja, em cada parte está o todo. A idéia de preservar o nosso planeta deve ganhar força com a educação. Devemos trabalhar para a formação de uma cultura planetária consciente dos desequilíbrios do planeta e das soluções micro e macroecológicas, locais e globais.

Finalmente, nesse mar de egoísmo e individualismo, encontramos a solidariedade. Esse é um tema importante nesta virada de milênio. Devemos educar as novas gerações para recompor laços de solidariedade: nas relações entre os sexos, entre pais e filhos, professores e alunos, comunidade e escola, diretoria e corpo docente, idosos e jovens, a solidariedade inter-geracional etc. A solidariedade deve se expandir para outras espécies, animais e vegetais. Hoje existe um amplo movimento mundial pela solidariedade humana e com os animais e vegetais. Não há mudança possível sem perceber que pertencemos a uma espécie que deve se solidarizar com a vida. Para tanto necessitamos mudar a visão antropocêntrica que nos coloca como reis, ou melhor, como déspotas absolutos da natureza, e desenvolver, então, uma visão em que o centro de tudo seja a vida e na qual tudo comece pelo direito a ela.

Destaco aqui o papel das mulheres nessa mudança de paradigmas: a afirmação dos valores femininos e da natureza feminina da alma humana pode nos trazer uma nova percepção do mundo e da vida. Somos herdeiros do patriarcalismo, que domina a natureza, e precisamos agora buscar novos diálogos e novos laços de solidariedade. Um grande lema para o novo milênio será o de feminilizar o planeta.