A Abaçaí foi pioneira em atividades artísticas e teatro ao ar livre na cidade de São Paulo; teatro propriamente dito e outros tipos de performances. Tudo começou, ainda bem no início, com algumas experiências de sair em bando pelas ruas de forma bastante espontânea, com figurinos ou não, abordando ou interagindo com o público na rua, numa linguagem mais de pantomima ou de dança. Este momento ficou sendo muito importante para o desenvolvimento da linguagem que começou a ser elaborada em seguida.
Concomitantemente, passou-se a se cultivar dentro do grupo um tipo de “teatro lúdico’ na época por nós denominado de Experimentos Teatrais. Esses experimentos tiveram origem em algumas das cenas do De Iure Machinarum, sempre reelaboradas para atividades ao ar livre, atividades de rua e apoiadas sempre na interação com o público.
Um dos momentos mais intensos deste tipo de atividade foi em 1974, durante a Expo Estudantil, na Praça Roosevelt. A convite do Departamento de Atividades Comunitárias da Regional da Sé, durante todas as noites realizamos atividades envolvendo o público todo da Praça. Numa dessas noites, nos utilizamos de uma trilha sonora montada com sons que imitavam bolhas de sabão estourando. Quando os plic plocs mecânicos começaram a ser ouvidos pelo espaço da Feira, as pessoas passaram a se olhar e a se perguntar sobre o que estava acontecendo. De vários pontos nossos ”atores” foram surgindo, imperceptivelmente, fazendo bolinhas de sabão, trazendo em seus copinhos muitos canudinhos; à medida em que se encontravam com as pessoas, olhavam-nas e, sem palavras, estimulavam a participação colocando canudinhos em suas mãos, passando então a fazer bolinhas de sabão a dois, a três, a dez. Estrategicamente, iam se encaminhando com essas pessoas para um ponto pré-estabelecido, próximo ao palco da Praça, confluindo aos poucos aquela multidão de pessoas fazendo bolinhas de sabão. O jogo foi se transformando até culminar numa grande ciranda. Ou uma grande brincadeira de roda de adultos e crianças na Praça.

Ampliado seu instrumental expressivo e comunicacional e desejosa de ampliar suas atividades de rua, em 1983 a Abaçaí criou o Vem, qui é bão!, com a intenção de projetar os cortejos de rua, cortejos carnavalescos sobretudo o lado teatral dos mesmos. Fazia, a cada ano, sua primeira saída no sábado ou domingo, anterior à semana do Carnaval, sempre com muita gente, música ao vivo, e personagens criadas nas suas oficinas que duravam 30 a 40 dias. Nestas oficinas as pessoas aprendiam a criar e confeccionar máscaras, cabeçorras, bonecões e adereços, a partir sobretudo de sucata, mas sempre com um tratamento estético bem cuidado. Faziam suas fantasias, seus figurinos a partir do reaproveitamento de outros materiais e iam todos para a rua. Saiu nos carnavais durante muitos anos seguidos, até que não se conseguiu mais manter a estrutura.
Apesar da linguagem carnavalesca, ou por isto mesmo, por este teatro carnavalizado, atuávamos durante todo o ano. Não eram poucas as oportunidades que tínhamos para colocá-lo nas ruas.
Foi também a chance de se ampliar a pesquisa e a produção de bonecões e cabeções (utilizados a partir do começo de 1980), com recurso do empapelamento, articulando-os com outras linguagens.
Os primeiros bonecos que criamos, gigantes processionais. foram um Casal de Velhos e a terceira foi a Maria Teresa. Esta passou a ser, por muito tempo, símbolo do Abaçaí nas ruas. Também, durante muito tempo ela compôs o cliping de abertura do programa Panorama da TV Cultura. que tratava de arte.
Estes nossos bonecões e cabeções foram e continuam sendo utilizados intensamente nos trabalhos de palco e em outras encenações, especialmente na nossa montagem do Auto da Cobiça (com efeito de cabeçorras e máscaras) algumas personagens tendo sido criadas a partir dos mesmos, estes de mais fácil manipulação e mais facilmente rearticuláveis. Por sua configuração física os cabeções representam, ao lado dos gigantões, anões. Trata-se assim de figuras meio esdrúxulas. Criamos em um curto espaço de tempo, alguns tipos que pudessem ser provocativos.
A esta altura já dominávamos bem os códigos da rua. E aconteceu uma aproximação intensa e duradoura com o SESC – começamos a participar e, muitas vezes, com destaque dos grandes eventos públicos organizados na Cidade de São Paulo (Dança na Cultura Popular, Lazer de Corpo e Arte, Natal na Cultura Popular…)
Foi também o momento em que nos engajamos em grandes movimentos da sociedade. Foi o caso do movimento pelas Diretas Já, em que atuamos intensamente havendo vários momentos daquelas caminhadas que foram por nós encabeçadas. Neste período nosso teatro de flashs foi bastante exercitado, possibilitando-nos o exercício intenso de nosso papel de artistas e cidadãos, tendo como apoio um Triolim (espécie de brincadeira que fizemos com o diminutivo de Trio Elétrico).

Também, a esta altura já dominávamos mais os segredos do riso popular (e para mim o riso verdadeiro é sempre popular, tendo descoberto a importância de certos recursos}:
- A carnavalização e a utilização de alegorias;
- O lado hiperbólico do grotesco popular, diferente do grotesco moderno;
- O trabalho com estereótipos facilita a relação com o público;
- Para haver comunicação na rua é preciso, de alguma forma, usar/ trabalhar o repertório usual, comum, das pessoas, do público;
- Utilização de personagens estruturadas sobre formas arquetípicas;
- Que, também, para o trabalho de rua é importante a bagagem da estética expressionista e, especialmente, a circense.
Teatro de Flashs e teatro em cortejo
“Haverá no mundo meio mais poderoso para opor-se às adversidades da vida e do destino! O inimigo mais poderoso fica horrorizado diante desta máscara satírica e a própria desgraça recua diante de mim, se me atrevo a ridicularizá-la! E, que diabo, esta terra, com seu satélite sentimental, a lua, não merece mais que burla.”
(Explicação do riso pelo narrador de Rondas Noturnas de Bonawentura, in M. Bakhitin)
A partir da aproximação Abaçaí/Tabefe em outubro de 1979, paralelamente aos espetáculos de palco de ambos se desenvolveu um trabalho de rua em cima dos folguedos, músicas e danças do folclore brasileiro. Esta etapa foi muito importante para a consolidação da atuação do Abaçaí, ratificando sua vocação para rua.
À medida que passamos a ir mais para a rua, e que, por outro lado, nos aprofundávamos nos estudos da cultura popular, fomos aprimorando nosso instrumental comunicacional e dominando mais os códigos para rua. Nos demos conta, por exemplo, da importância da visualidade, seja pela atuação dos bonecos gigantes e cabeções, seja pela utilização de personagens que se apoiavam em alegorias, que se materializavam como alegorias, tal como ocorreu com a Comédia del Arte e outras grandes encenações populares da Idade Média e do Renascimento. Personagens que, sendo tipos, permaneceriam, adaptando-se a várias situações.
Assim surgiram várias delas, algumas encravadas na mítica coletiva (caso do capeta e do vampiro), outras apoiando- se em imagens massivas hodiernas (caso do casal de punks e do Tio San), e que até hoje integram nossas encenações e intervenções, conservando o mesmo poder de sedução dos primeiros tempos, com veremos a seguir.
A partir das atuações no centro de São Paulo foram sendo estruturadas as bases do que chamamos, provisoriamente, de Teatro de Flashs ou Teatro em Flashs.
Na prática o Teatro de Flashs constitui- se de encenações essencialmente fragmentárias, atuações compactas, personagens concretizadas visualmente, muitas das vezes alegorizadas; como o Vampiro, por exemplo utilizado, grande alegoria de situações de opressão ou de angústia da nossa sociedade, do nosso povo ou de segmentos desta sociedade.
São momentos rápidos, dinâmicos e essencialmente interativos. Se não propriamente um teatro em cortejo (ainda que em muitos momentos tenha acontecido e ainda acontece em meio a grandes cortejos) é sempre um teatro de itinerância, de passagem, as cenas estruturadas e claras não podendo durar mais de dois ou três minutos. Não é um teatro representação para, mas sim de estar representando com. Por isso mesmo não é para um grande público a uma só vez, apesar de acontecer sempre na rua ou em espaços de grande afluxo de pessoas. Nele as cenas são feitas para/ com pequenos grupos de pessoas, por vezes quase individualizadamente. Esgotado o jogo segue-se para outro ponto, logo adiante.
Sua forma de atuação, afora o detalhe de ser compacto e interativo é sempre articulada: por vezes uma cena se inicia com uma ou duas personagens que se juntam atuando com um determinado grupo de pessoas. Pode mesmo acontecer de estas serem imperceptivelmente conduzidas, para um outro “núcleo cênico” que esteja acontecendo a alguns metros, rearticulando-se, entre as cenas iniciais.
Por ser um teatro essencialmente interativo também é um teatro que conta sempre com o improviso, baseia-se no improviso, e o cultiva.
Assim, no treinamento do elenco para esse tipo de atuação deve-se sempre levar em conta o imprevisto e imprevisível que é a rua. Parte das técnicas e do treinamento aplicados na formação dos atores tiveram como base as apresentações de rua da Festa de Reis, e na sequência se inspiraram no Teatro Invisível do Boal. Eram realizados grandes laboratórios nas ruas e nas praças, aos quais dávamos o nome de mascaradas.
Insistia-se inicialmente em que os atores observassem a realidade e os tipos circunstantes, as cenas de rua, os fatos da rua e que procurassem registrar de alguma forma, que fizessem apontamentos. Em seguida eram estimulados a se inspirar naqueles tipos, naquelas personagens reais para criar suas personagens e situações fictícias.
Como o Abaçaí e o Tabefe ensaiavam na Praça da Sé, no prédio da Caixa Econômica Federal, era-lhes muito fácil, e até convidativo, inserir-se em todo aquele contexto dos arredores da Praça. Em muitos sábados ou domingos, quando dos encontros semanais, eram agendados, antecipadamente, o dia de mascarada, sendo solicitado a cada ator que compusesse seu personagem, seu tipo. Durante uma hora aproximadamente, era feito o aquecimento com eles e, em seguida eram “soltos na rua” com suas personagens criadas. Surgiam ideias interessantes. Como, certa vez, uma migrante grávida que chegava com a sua mala de roupas e que de repente ficava perdida em plena rua Direita ou uma das transversais. Formava-se uma roda, juntava-se um volume grande de pessoas que procuravam, de alguma forma, ajudá-la.
Competia ao ator/ atriz, nestes momentos além de representar bem, não dar a entender, pelo menos de início, tratar-se de uma mera encenação. De alguma forma isto deveria se explicitar, afinal para nós o teatro é um jogo de cumplicidades. Chegava um momento em que os atores “facilitavam” e as pessoas descobriam o jogo e muitos continuavam dele participando. Deviam sempre lidar com habilidade para que as pessoas se mantivessem no jogo e sentissem, no final, que tinha valido a pena participar do mesmo.
Algumas vezes os atores ficaram frustrados. Em uma destas um casal criou uma dupla de violeiros sertanejos e foram cantar na esquina da Boa Vista com a rua Direita. Não foram muito convincentes e as pessoas seguiam em frente. Algumas num primeiro momento até tentavam acreditar, mas em seguida se desinteressavam. Recolheram-se, reavaliaram, recompuseram as suas personagens e voltaram.
Outro momento bastante marcante foi quando uma das atrizes criou a Mundica inspirada naqueles tipos que na década de oitenta povoavam a Praça da Sé, mais andarilhos que mendigos. Observando-os compôs, a sua personagem. A Mundica não era propriamente uma maltrapilha, mas uma moradora de rua, uma andarilha, com algum desajuste, talvez um pouco de falta de lucidez. Andava com sua sombrinha, sua bolsa e se relacionava com os próprios mendigos, com o próprio povo da rua, entrava nos bares para pedir água, as pessoas convidavam-na para tomar um pingado, comer um pão com manteiga. Mesmo os andarilhos ofereciam-lhe de suas próprias comidas (em nenhuma vez aceita).
Esse tipo de inserção na vida, na rotina da cidade, foi praticado durante muito tempo incluindo-se a Ladeira Porto Geral. No meio daquele vai e vem (na época não havia as barraquinhas dos camelôs) muitas vezes foram feitas significativas intervenções. A isto os nordestinos, migrantes instalados, davam o nome de presepada.
Estas intervenções, esta atuação de rua, tinham a finalidade de instrumentalizar atores/artistas, apurá-los na técnica do teatro de flashs. Com as suas personagens deveriam sustentar uma situação fictícia (teatral) na rua, sendo capazes de interagir com o público e de fazer com que os circunstantes se interessassem. Através daí é que eles passaram a criar as personagens alegóricas, visualizadas que o teatro de flashs demandava, personagens não têm necessariamente uma relação com a vida real e sim com fatos, com momentos, com situações. Mas nenhuma relação realista com a vida.
De resto era uma grande oportunidade para o cidadão comum, na rua, entrar no jogo do faz de conta teatral. E alguns jogavam pra valer. Um corte, ainda que de raspão, na rotina, no vai e vem do Centro da Cidade que de alguma forma convidava o transeunte a dar uma parada. E a simples possibilidade da parada e a bênção da interação justificava e motivava a proposta naquele estágio.